Caxemira: Ocupada, Dividida e Disputada | |||||
Julho 2004 - ANO VIII - Número 88 | |||||
Uma dupla de repórteres brasileiros visitou pela primeira vez a Caxemira, que, mais do que um território disputado por duas potências nucleares, a Índia e o Paquistão, é a terra de um povo que luta por sua independência em relação aos dois países
Texto e fotos: Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá
Enquanto a população de Nova Déli se refugiava do calor de 40 graus em shopping centers com ar condicionado, observávamos a garoa fria se transformar em flocos de neve através da janela aberta, para entrar um pouco de luz, do terceiro andar de um prédio sem energia no centro de Srinagar, capital de verão da Caxemira ocupada pela Índia. “Acho que a última vez que nevou em abril foi em 1987”, lembra Mohammad Morifat Qadri, editor do diário Afaaq. O ano é emblemático, pois marca a virada de atitude de alguns líderes separatistas que, diante das prisões em massa e da fraude nas eleições com menos de 4 por cento do eleitorado, decidiram pegar em armas sem abdicar da luta política. Conseqüentemente, 1987 também é o início da nova escalada militar na região, que a transformou na campeã mundial em tropas de ocupação e território onde ocorreram mais ações extremistas em todo o mundo em 2003. “Talvez seja um sinal de novas mudanças na situação da Caxemira”, arrisco. “Inshala” (se for da vontade de Alá), responde Qadri. Apesar de ser um território ocupado desde 1947, quando houve a independência do subcontinente indiano, e de sua importância estratégica entre Índia, Paquistão, China, Afeganistão e Tibete, a questão da Caxemira tem sido tratada desde sempre pela mídia como uma simples disputa entre Índia e Paquistão. Raramente se ouve falar da luta pela independência e autodeterminação do povo caxemire. Mesmo quando os jornais atribuem os atentados a “extremistas separatistas”, e não simplesmente a “terroristas”, o leitor fica sem saber “quem quer se separar de quem”. Existem pelo menos doze grupos armados ou políticos atuando e três grandes tendências: independência, autonomia e anexação ao Paquistão. Os pontos em comum são a retirada das tropas e a consulta popular sobre o futuro da Caxemira. Também há pouca informação sobre os interesses internacionais na região dentro da estratégia estadunidense de guerra global contra o terror. Com certeza existem tanto agentes da CIA como membros da Al Qaeda infiltrados na Caxemira e, pelas novas regras da OTAN depois de 11 de setembro, os EUA teriam “justificativa legal” para invadir o território. Aliás, uma vez que o Paquistão entrar para a OTAN, teoricamente a aliança militar deveria declarar guerra à Índia. Assim, existe uma pressão nos meios político-militares para que se resolva de uma vez por todas a questão da Caxemira. Não é por acaso que em junho ocorreu a primeira reunião formal entre ministros de relações exteriores da Índia e Paquistão desde dezembro de 2001, quando um atentado ao parlamento indiano atribuído a separatistas caxemires apoiados pelo Paquistão levou mais de 1 milhão de soldados para a Linha de Controle (LoC), que separa as regiões da Caxemira ocupadas por um e outro país, e quase deflagrou uma guerra nuclear. “A comunidade internacional tem falhado em ouvir a voz do povo da Caxemira porque não temos petróleo e nem coisa alguma a oferecer”, acredita Mohammad Yaseen Malik, presidente do Jammu & Kashmir Liberation Front (JKLF), um dos primeiros grupos a entrar na luta armada, mas que agora se dedica a enfrentamentos políticos. Malik foi um dos líderes da campanha pelo boicote das eleições na Caxemira. Menos de 18 por cento dos eleitores votaram e muitos foram arrastados para as urnas pelo exército. Na véspera de nossa entrevista, ele próprio havia sido espancado e preso durante uma manifestação na cidade caxemire de Islamabad. Nos dias seguintes seria novamente preso, para não atrapalhar as eleições na “maior democracia do mundo. “Depois de 11 de setembro, os EUA e a Europa precisam implementar novos planos de paz e estabilidade para o mundo, e esperamos que isso ocorra também na Caxemira, com a participação do povo. Não podemos prever o futuro, mas, mais cedo ou mais tarde, estaremos unificados, sem a LoC e independentes de Índia e Paquistão.” “Posso dizer, sem hesitação, que os interesses americanos não são humanitários e nem de justiça”, contesta Syed Ali Geelani, presidente da All Parties Hurriayt Conference, organização que reúne os principais partidos e grupos separatistas. “Por que deveríamos esperar algo deles ou da comunidade internacional? Vejam o tratamento que essa potência global está dando aos prisioneiros de guerras no Iraque! Vamos continuar com nossos esforços junto à ONU para proteger nossos direitos básicos, apesar de o Comitê de Segurança não ter nenhuma simpatia com os mulçumanos. Somos todos mulçumanos, mas, além disso, somos humanos. Temos de ter fé no único poder maior de todos, o poder de Alá!” História de ocupações O vale da Caxemira, uma região de imensa beleza natural, com grandes áreas férteis, rios e lagos cercados por altas montanhas, sempre suscitou sonhos de independência em seus governantes, quase sempre estrangeiros. Desde o século III a.C., reis e príncipes budistas, hindus, mongóis, afegãos, mulçumanos e siques dominaram partes ou a totalidade do que hoje é o Estado indiano de Jammu e Kashmir. A população sempre sofreu, mais ou menos, dependendo da personalidade do governante. Os dogras que governaram até 1947, por exemplo, tinham “direito” a uma prática chamada beggar, que consistia em recolher os homens nas vilas e campos para trabalhos forçados sem qualquer contrapartida, nem mesmo alimentação. Se morriam de fome, sede ou ferimentos, eram simplesmente substituídos por outros. Com o fim do domínio britânico, o governador de cada Estado deveria decidir se seu território faria parte da Índia ou do Paquistão, baseado em três fatores: contigüidade territorial, religião predominante e vontade expressa da população. Apesar de ter uma longa fronteira com o Paquistão e mais de 90 por cento da população mulçumana, o Estado era governado pelo marajá hindu Hari Singh. Também ele teve a tentação de tornar a região autônoma e hesitou o quanto pode para tomar sua decisão. Somente depois de tribos pashtus do Paquistão invadirem a parte leste do território, o marajá teria assinado uma declaração de adesão à Índia, e o exército indiano veio “em seu socorro”. Estima-se que 300.000 mulçumanos, tentando emigrar para o Paquistão, tenham sido mortos pelas tropas dogras e siques. A primeira guerra entre Índia e Paquistão pelo controle da Caxemira seguiu até 1949, quando foi assinado um cessar-fogo sob supervisão da ONU que instituiu a LoC, dividindo até hoje famílias e conterrâneos. Desde aquela época, o Conselho de Segurança da ONU já baixou diversas resoluções sobre a situação na região, exigindo a realização de um plebiscito em que a população decidiria seu futuro. Mas a Índia ignora essas resoluções e desde 1957 mantém o discurso de que o Estado de Jammu e Kashmir é parte integrante de seu território. De lá para cá, a situação tem apenas piorado. “Como qualquer potência nuclear, a Índia é arrogante e imperialista, por isso simplesmente se nega a assinar tratados internacionais e aceitar resoluções da ONU”, diz um observador internacional com o qual conversamos. Convenções e tratados Por causa do aumento das tropas e do surgimento da guerrilha separatista nos anos 90, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) conseguiu um acordo com o governo indiano para atuar na região. Segundo o Memorandum of Understanding (MOU), a entidade recebeu a permissão de visitar os detidos relacionados ao conflito, cerca de 1.500 atualmente, e relatar às autoridades indianas se o tratamento dado a esses detentos segue as normas humanitárias definidas a partir das Convenções de Genebra, o chamado direito internacional humanitário (DIH). Em contrapartida, a entidade se compromete a manter esses relatórios confidenciais, não questionar como as detenções são realizadas, nem exigir investigações ou prisões de agentes que não cumpram as convenções. É a única maneira de entrar nas prisões! “Temos conseguido algum progresso e estamos ampliando nossa atuação”, afirma Robert Przedpelski, chefe da delegação do CICV no sul da Ásia. “Desde o ano passado, por exemplo, estamos dando cursos sobre o DIH para as forças de segurança da região, o que pode evitar maiores problemas no futuro.” O CICV também tem ajudado a Cruz Vermelha da Índia na construção de um centro ortopédico na cidade de Jammu, capital de inverno da Caxemira, e na sinalização de um grande campo minado na fronteira com o Paquistão. A Índia não assinou os tratados de banimento de minas terrestres e plantou um grande número desses artefatos na última década. Atrocidades Mais do que os atentados, é a atuação dos policiais e tropas indianas, tanto nas prisões como nas ruas das cidades caxemires e nas constantes operações de “cerco e busca” nas áreas rurais, o grande terror da população. Afinal, o exército indiano conta com cerca de 600.000 homens na região, três vezes mais do que as tropas estrangeiras que ocupam o Iraque. São esses homens com religião, comida, língua e cultura diferentes dos caxemires os maiores responsáveis pela morte de 60.000 a 90.000 pessoas nos últimos quinze anos e de terríveis atrocidades. O jornal The Himalayan Mail publica diariamente na primeira página o “placar oficial” dos mortos no ano. Em 6 de maio, a contagem estava em 547 desde 1º de janeiro: 152 civis, 321 militantes e 74 homens das forças de segurança. O livro Catch and Kill - A Pattern of Genocide in Kashmir (Pegue e Mate - Um Exemplo do Genocídio na Caxemira), publicado em 1997, traz detalhes de 129 execuções extrajudiciais de civis em custódia, incluindo mulheres, velhos e adolescentes, apenas entre 0/10/1996 e 31/3/1997. Um relatório do Asia Watch de maio de 1991 fala do estupro de cem mulheres da vila de Kuan Poshpora pelos soldados do Quarto Regimento de Rifles Raj de Kupwara, com declarações de 53, incluindo uma grávida que diz ter sido estuprada em frente ao filho de 6 anos. “A ocupação da Caxemira pelo exército indiano sempre foi ilegal, imoral e desumana”, setencia Geelani. “Temos mais de 10.000 desaparecidos. As pessoas estão sendo torturadas nas prisões com ferro em brasa e choques elétricos. Muitas vezes, a família recebe apenas partes de corpos para enterrar. As vilas estão sendo queimadas aos milhares, sem nenhuma razão ou justificativa. Mesmo se houvesse um mujahedin escondido, não há por que queimar a vila inteira. Podia citar milhares de mortos e nenhum deles era militante, terrorista ou guerrilheiro.” Basta se afastar um pouco das principais ruas de Srinagar e entrar nas vielas e lojas menores para encontrar pessoas comuns dispostas a falar abertamente sobre os problemas que enfrentam. No bairro de Dalgate, um homem percebe nosso interesse nas crianças que brincam entre os túmulos de um cemitério e se aproxima para indicar onde estão enterrados os mártires mortos pelos soldados indianos, como seu filho. “Esse cemitério é pequeno, existem centenas de outros maiores, principalmente nas vilas nas montanhas”, diz. “Isso só vai acabar quando o exército indiano deixar a Caxemira e formos independentes.” Checkpoints Abdul Geni Wani, cuja família mora em Bandipoyra, trabalha em três houseboats (quartos de hotel flutuantes no lago Dal), durante os meses de verão, e teve três primos envolvidos com a militância mortos pelo exército. Apesar de a favor da independência, ele não acredita em armas. “Está no Alcorão que o bom muçulmano não deve matar”, afirma. Wani explica que este é o último ano que vai trabalhar em Srinagar, porque tem medo de deixar a família sozinha. “Meu filho mais velho tem 15 anos, os soldados podem vir e achar que ele é um mujahidin e prendê-lo ou matá-lo”, diz. Ele conta um episódio em que o garoto presenciou uma execução no meio da rua, e outra vez em que foi parado pelas tropas com os fuzis apontados para sua cabeça. Pergunto se poderíamos visitar sua casa e ele diz que seria preciso uma identidade com o endereço da vila para passar nos checkpoints. Mas não é preciso pegar estradas secundárias para ser parado num checkpoint na Caxemira. Eles estão por toda a parte. Para visitar o pequeno templo hindu de Shankaracharya, a estrada de 4 quilômetros tem três checkpoints. Revistas pessoais e detectores de metal também são comuns nas entradas de bancos, correios e mesquitas. Na principal, a enorme Hazart Bal, o clérico Bashir Aamad Farroqi fez o sermão de 3 de maio para 15.000 pessoas cercado por policiais com fuzis. Na beira da estrada para Gulmarg, uma estação de esqui, a uma hora do centro da capital, existe um soldado a cada 100 metros. Em volta do Dal há soldados a cada 10 ou 15 metros, além do posto no centro do lago, onde os condutores de shikara, espécie de gôndola típica da região, precisam parar para mostrar sua autorização de trabalho e identificar os passageiros. Não é de admirar que sejam raros os turistas estrangeiros. Saúde mental A tensão constante, a presença militar e os abusos dos soldados têm tido grande impacto também na saúde mental da população. Não existe mais vida noturna e as opções de diversão diminuem rapidamente. Apenas um dos doze cinemas em funcionamento em Srinagar no início dos anos 90 continua aberto, assim como apenas dois dos cerca de cem bares que existiam. “Há uma grande necessidade no setor da saúde mental da população devido ao conflito”, relata Stuart Zimble, chefe da delegação dos Médicos sem Fronteira (MSF) em Déli. “Ajudamos a restaurar a infra-estrutura do único hospital psiquiátrico do Estado e pedimos uma parte do prédio para um trabalho de aconselhamento da população que sofre de estresse contínuo ou de estresse pós-traumático.” Saskia Ohlin, delegada dos MSF em Srinagar, conta que os casos de pessoas que perderam parentes no conflito, foram presas, torturadas ou presenciaram atentados são bastante comuns. “Mas a maior parte dos que nos procuram sofre de problemas relacionados com estresse prolongado, como depressão, dores de cabeça, apatia, palpitações, insônia…”, diz. Até duzentas pessoas passam pelo consultório diariamente. A entidade está buscando atingir áreas de acesso mais difícil, especialmente perto da LoC, e possui um programa semanal de rádio com dramatizações de situações comuns. “Nossos conselheiros, que são profissionais locais que treinamos e supervisionamos, orientam as pessoas a dividir os problemas com os amigos, participar de festas, ouvir música, rezar…” Solução? Quando fechávamos esta matéria, soubemos pelos jornais de um novo atentado assumido pelo grupo rebelde Hizbul Mujahedin, baseado no Paquistão. Mais 33 pessoas mortas, inclusive esposas e filhos de militares indianos. A Associated Press cita o novo primeiro-ministro Manmohan Singh dizendo: “A persistência da violência na Caxemira indica que o terrorismo continua sendo uma grave ameaça à nossa nação, enquanto continuamos buscando soluções pacíficas”. Na mesma hora lembramos de uma notícia que ficou restrita aos jornais da Caxemira. Duas semanas antes, o comandante-chefe de operações do grupo, Ghazi Shahad-ud-Din, teria sido levado por policiais para dentro de uma casa em Gurgadi Mohalla, diante de dezenas de pessoas, e depois retirado morto do local. A versão oficial, claro, fala de troca de tiros em esconderijo. A manipulação das notícias continua. Decidimos então enviar um e-mail para o colega caxemire perguntando sua opinião sobre o novo governo indiano e se havia alguma mudança nas perspectivas da reunião entre os ministros das relações exteriores. Mohammad Qadri responde que continua otimista, que todos os integrantes do novo gabinete são velhos líderes do Partido do Congresso, que conhecem melhor do que ninguém a questão da Caxemira e que fizeram parte dos acordos com o Paquistão e os líderes caxemires em 1971 e 1975. Ele traz ainda mais um dado importante: depois da reunião, o ministro do Interior indiano, Shiv Raj Patil, vai finalmente se encontrar com os líderes do All Parties Hurriayt Conference, na primeira semana de julho. Esse, sim, pode ser o começo de uma solução da questão da Caxemira. Inshala! Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá são jornalistas e repórteres fotográficos.
| ||||
Mohammad Morifat Qadri editor do jornal Afaaq | ||||
Mohammad Yaseen Malik Presidente Jammu & Kashmir Liberation Front | ||||
Syed Ali Geelani Presidente All Parties Hurriayt Conference | ||||
- Entre em contato
fone: 55 - 11 - 9631-0666
© copyright 2005 Mediaquatro