As houseboats são como quartos de hotel atracados nas bordas do tranqüilo lago Dal, no centro de Srinagar, capital de verão da Caxemira. As house boats são 980, com funcionamento e ocupação controlados pelo governo. Têm cerca de 70 metros quadrados divididos em duas suítes, salas de jantar e estar, pequena cozinha para aquecer as refeições, um terraço na frente e um solário.
As paredes, de madeira entalhada por artesãos locais; as cortinas bordadas e os tapetes multicoloridos também feitos à mão; os móveis, prataria e louças são antigos e de bom gosto; nas estantes, best sellers em inglês, alemão, francês e outras línguas.
Seria um lugar perfeito para uma temporada de descanso, se a Caxemira não fosse um território disputado pela Índia e Paquistão desde 1947, ocupado por quase um milhão de soldados estrangeiros e abalado por ataques terroristas semanais praticados por grupos que lutam, desde 1989, pela independência da região.
Sentados no confortável sofá de veludo, Haji Mohammad Pakhtoon, de voz suave e modos simples, conta como cruzou o mundo cinco vezes e foi à Meca duas vezes. Pakhtoon é um próspero empresário, faz negócios com indianos, tropas de ocupação (seu hotel hospeda oficiais do Exército), eventuais turistas estrangeiros e com comerciantes de todo o mundo, através de uma empresa de exportação de produtos típicos da região.
- Meu pai viu esse conflito desde o início. Ele dizia que este lugar era um paraíso antes da divisão da Índia e Paquistão. Primeiro o exército paquistanês invadiu uma parte. Depois o marajá que havia comprado a Caxemira dos ingleses pediu ajuda ao Exército indiano. E, desde então, vêm sempre mais e mais tropas".
Seu discurso vai ficando cada vez mais ácido. Cita o referendo popular exigido pela ONU para definir o destino da região, nunca realizado, e a separação das famílias pela Linha de Controle que divide os territórios ocupados pelos dois países.
-Hoje, felizmente, não existe muita fome aqui. Mas não há paz de espírito e ninguém pode ser feliz comendo se outro passa fome. Ninguém deveria passar fome aqui.
Pakhtoon se cala por um instante, passa a mão pelos cabelos, respira fundo e muda de assunto. De volta aos negócios! Pakhtoon diz que fará um preço especial pela houseboat com as três refeições incluídas, a shikara (espécie de gôndola) para levar e trazer para a borda do lago e mais o funcionário que trará a comida e arrumará o quarto. Ele não aceita contrapropostas. O preço é, de fato, bastante razoável.
O funcionário é Abdul Geni Wani, bom amigo e fonte de informações de como vive o povo comum da Caxemira no meio do furacão de violência, insanidade e jogo geopolítico mundial.
Discreto e atencioso, Wani tem dificuldade para se expressar em inglês. Mas os olhos tristes e o semblante cansado não deixam dúvidas sobre as dificuldades que enfrenta. Longe da quietude do lago Dal, sua família pode ser a próxima vítima das constantes missões de cerco e busca das tropas indianas. Para os soldados hindus, qualquer mulçumano jovem de vila camponesa é um potencial terrorista islâmico, um mujahedin. E o filho mais velho de Wani acaba de completar 15 anos.
Como quase todos no Vale, Wani é contra a ocupação, mas pegar em armas está fora de cogitação.
-Minha mãe morreria se eu encostasse num rifle. O Alcorão diz que devemos respeitar nossos pais e que matar é errado.
Ele já morou em Srinagar, trabalhando vários anos nas shikaras dos turistas. Atualmente, vem à cidade apenas durante o verão, trabalhar pelo dinheiro necessário para as despesas da família, cerca de US$ 140,00 por três meses servindo em três houseboats.
A jornada é estafante, cada turista faz seu próprio horário e Wani praticamente não tem tempo para dormir ou mesmo fazer as cinco orações diárias. Viajar à Meca, então, é um sonho impossível. Até a vontade de ficar no interior para proteger a família parece impraticável. A economia da região baseia-se quase que totalmente no turismo.
Mesmo na cidade, a falta de turistas afeta a economia. Ao se andar pelo centro velho, encontra-se um vendedor de bules artesanais, que fiel à mais tradicional hospitalidade mulçumana , convida para tomar um chá e conhecer a família. São três gerações de homens com formação superior (médico, engenheiro e matemático) que passam os dias a martelar chapas de cobre sem perspectivas de encontrar trabalho em suas áreas.
Explica o avô, Mohammad Sultan Khan:
- Sempre houve pouco emprego na região e o artesanato era uma alternativa, mas agora os turistas são poucos por causa do conflito.
A situação econômica se agravou. Havia uma mulher de burka a esmolar nas ruas com o filho nos braços, algo raro na cultura islâmica. O Alcorão garante proteção às viúvas e desquitadas.
De volta à houseboat. O lento movimento do Dal. Cercado por montanhas de picos nevados, o lago quase não tem marolas. Os lírios e os lótus reinam absolutos sem ser incomodados pelas centenas de canoas pobres que conduzem adultos e crianças e pelas poucas shikaras que levam os turistas para passeios entre as plantações flutuantes de hortaliças, pequenas ilhas e uma paisagem deslumbrante.
Sem os soldados a cada 10 metros em volta do lago, a montar guarda nas ilhas e a checar os documentos de turistas e moradores, nem pareceria que existe uma guerra. O cenário não lembra em nada o seqüestro e a decapitação de seis turistas estrangeiros em 1995.
Muito menos sugeriria algum perigo como o atentado na ponte Maulana Azad que matou duas pessoas e deixou outras 26 feridas dias depois. O primeiro fim de semana deste julho somou mais de 16 mortes relacionadas aos conflitos. A calmaria só prenunciava a tempestade.