21 de Julho de 2004 - ANO X - Número 300

CAXEMIRIANA

No olho calmo do furacão

Mulher de Burka pedindo esmola nas

ruas é algo raro na cultura islâmica.

Reflexo da atual situação econômica

As houseboats são como quartos de hotel atracados nas bordas do tranqüilo lago Dal, no centro de Srinagar, capital de verão da Caxemira. As house boats são 980, com funcionamento e ocupação controlados pelo governo. Têm cerca de 70 metros quadrados divididos em duas suítes, salas de jantar e estar, pequena cozinha para aquecer as refeições, um terraço na frente e um solário.

As paredes, de madeira entalhada por artesãos locais; as cortinas bordadas e os tapetes multicoloridos também feitos à mão; os móveis, prataria e louças são antigos e de bom gosto; nas estantes, best sellers em inglês, alemão, francês e outras línguas.

  Seria um lugar perfeito para uma temporada de descanso, se a Caxemira não fosse um território disputado pela Índia e Paquistão desde 1947, ocupado por quase um milhão de soldados estrangeiros e abalado por ataques terroristas semanais praticados por grupos que lutam, desde 1989, pela independência da região.

  Sentados no confortável sofá de veludo, Haji Mohammad Pakhtoon, de voz suave e modos simples, conta como cruzou o mundo cinco vezes e foi à Meca duas vezes. Pakhtoon é um próspero empresário, faz negócios com indianos, tropas de ocupação (seu hotel hospeda oficiais do Exército), eventuais turistas estrangeiros e com comerciantes de todo o mundo, através de uma empresa de exportação de produtos típicos da região.

- Meu pai viu esse conflito desde o início. Ele dizia que este lugar era um paraíso antes da divisão da Índia e Paquistão. Primeiro o exército paquistanês invadiu uma parte. Depois o marajá que havia comprado a Caxemira dos ingleses pediu ajuda ao Exército indiano. E, desde então, vêm sempre mais e mais tropas".

  Seu discurso vai ficando cada vez mais ácido. Cita o referendo popular exigido pela ONU para definir o destino da região, nunca realizado, e a separação das famílias pela Linha de Controle que divide os territórios ocupados pelos dois países.

-Hoje, felizmente, não existe muita fome aqui. Mas não há paz de espírito e ninguém pode ser feliz comendo se outro passa fome. Ninguém deveria passar fome aqui.

Pakhtoon se cala por um instante, passa a mão pelos cabelos, respira fundo e muda de assunto. De volta aos negócios! Pakhtoon diz que fará um preço especial pela houseboat com as três refeições incluídas, a shikara (espécie de gôndola) para levar e trazer para a borda do lago e mais o funcionário que trará a comida e arrumará o quarto. Ele não aceita contrapropostas. O preço é, de fato, bastante razoável.

  O funcionário é Abdul Geni Wani, bom amigo e fonte de informações de como vive o povo comum da Caxemira no meio do furacão de violência, insanidade e jogo geopolítico mundial.

Discreto e atencioso, Wani tem dificuldade para se expressar em inglês. Mas os olhos tristes e o semblante cansado não deixam dúvidas sobre as dificuldades que enfrenta. Longe da quietude do lago Dal, sua família pode ser a próxima vítima das constantes missões de cerco e busca das tropas indianas. Para os soldados hindus, qualquer mulçumano jovem de vila camponesa é um potencial terrorista islâmico, um mujahedin. E o filho mais velho de Wani acaba de completar 15 anos.

  Como quase todos no Vale, Wani é contra a ocupação, mas pegar em armas está fora de cogitação.

-Minha mãe morreria se eu encostasse num rifle. O Alcorão diz que devemos respeitar nossos pais e que matar é errado.

Ele já morou em Srinagar, trabalhando vários anos nas shikaras dos turistas. Atualmente, vem à cidade apenas durante o verão, trabalhar pelo dinheiro necessário para as despesas da família, cerca de US$ 140,00 por três meses servindo em três houseboats.

A jornada é estafante, cada turista faz seu próprio horário e Wani praticamente não tem tempo para dormir ou mesmo fazer as cinco orações diárias. Viajar à Meca, então, é um sonho impossível. Até a vontade de ficar no interior para proteger a família parece impraticável. A economia da região baseia-se quase que totalmente no turismo.

Mesmo na cidade, a falta de turistas afeta a economia. Ao se andar pelo centro velho, encontra-se um vendedor de bules artesanais, que fiel à mais tradicional hospitalidade mulçumana , convida para tomar um chá e conhecer a família. São três gerações de homens com formação superior (médico, engenheiro e matemático) que passam os dias a martelar chapas de cobre sem perspectivas de encontrar trabalho em suas áreas.

Explica o avô, Mohammad Sultan Khan:

- Sempre houve pouco emprego na região e o artesanato era uma alternativa, mas agora os turistas são poucos por causa do conflito.

A situação econômica se agravou. Havia uma mulher de burka a esmolar nas ruas com o filho nos braços, algo raro na cultura islâmica. O Alcorão garante proteção às viúvas e desquitadas.

  De volta à houseboat. O lento movimento do Dal. Cercado por montanhas de picos nevados, o lago quase não tem marolas. Os lírios e os lótus reinam absolutos sem ser incomodados pelas centenas de canoas pobres que conduzem adultos e crianças e pelas poucas shikaras que levam os turistas para passeios entre as plantações flutuantes de hortaliças, pequenas ilhas e uma paisagem deslumbrante.

Sem os soldados a cada 10 metros em volta do lago, a montar guarda nas ilhas e a checar os documentos de turistas e moradores, nem pareceria que existe uma guerra. O cenário não lembra em nada o seqüestro e a decapitação de seis turistas estrangeiros em 1995.

Muito menos sugeriria algum perigo como o atentado na ponte Maulana Azad que matou duas pessoas e deixou outras 26 feridas dias depois. O primeiro fim de semana deste julho somou mais de 16 mortes relacionadas aos conflitos. A calmaria só prenunciava a tempestade.

 

HOME

Entre em contato

fone: 55 - 11 - 9631-0666

© copyright 2005 Mediaquatro