Os meses de abril e maio deste ano foram de festa cívica em quase toda a Índia, considerada a maior democracia do mundo. As urnas reconduziram ao poder o Partido do Congresso, o mesmo do qual faziam parte os fundadores da nação, Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru, e também Mohammad Ali Jinnah, que no processo de libertação da Inglaterra exigiu uma pátria muçulmana e criou o Paquistão. A divisão do subcontinente em dois países é a gênese do atual conflito na Caxemira, mas já não representa toda a complexidade da situação. As eleições (que tiveram menos de 18% de presença do eleitorado) e o reinício das conversações de paz entre Índia e Paquistão, oficialmente em guerra desde 1947 pelo domínio do território, poderiam acenar uma saída amigável. Mas foram como gasolina na fogueira do conflito. Afinal, nenhum dos países até agora quis saber a opinião dos maio-res interessados no assunto: os próprios caxemirianos.
Foi a imposição de um governo que teve menos de 2% dos votos na eleição de 1989 que deu origem aos diversos grupos separatistas que atuam na região. Calcula-se que as ações terroristas e a repressão militar do governo indiano anterior tenham causado 90 mil mortes nos últimos 15 anos. Guerra mesmo entre Índia e Paquistão só houve três: em 1947, 1965 e 1971. Em 1974, a Índia testou sua primeira bomba nuclear. Anos depois, o Paquistão mostrou seu poderio atômico. E o jogo começou a se tornar muito perigoso. A Caxemira hoje vive um frágil cessar-fogo, e um conflito de amplo espectro poderia facilmente se transformar numa catastrófica guerra nuclear. E ninguém quer apertar o primeiro botão.
Os panfletos de turismo de Nova Délhi anunciam a Caxemira como a “Veneza do Oriente” em razão das shikaras, tradicionais gôndolas que navegam o Lago Dal, na capital, Srinagar. Mas os barcos são mero detalhe neste que é um dos lugares mais bonitos do planeta, pródigo em rios cristalinos, pomares, montanhas, jardins centenários, monastérios e mesquitas milenares. Seria tão ou mais sedutora que sua homônima no Ocidente se não fossem os cerca de 1 milhão de soldados, os inúmeros checkpoints, onde veículos e pessoas são revistados a todo tempo, a ameaça de ataques terroristas mais freqüentes que na Colômbia ou na Palestina e a tensão quase palpável no ar. Somente este ano, mais de mil pessoas foram mortas em situações relacionadas aos conflitos, incluindo uns poucos turistas indianos. O reinício das negociações de paz entre Índia e Paquistão, paralisadas desde um atentado suicida ao Parlamento indiano em 2001, estimulou o turismo na região, mas também levou ao aumento das ações de grupos que lutam por um país independente. Com razão: a Caxemira ficou de fora de todas as reuniões.
Acrescente-se ao conflito entre os dois países o fato de que não se trata de uma, e sim de várias Caxemiras, tantas são as suas divisões internas. A mais forte delas é a Linha de Controle, que separa as porções ocupadas pelas tropas indianas, paquistanesas e chinesas. Nem cidadãos nem organismos humanitários podem cruzar as barreiras guardadas por centenas de milhares de soldados e com uma pequena presença de observadores da ONU.
Outras divisões, também nada sutis, são as que separam os 11 milhões de habitantes em etnias e religiões diferentes. Na parte norte do território o trecho ocupado pelo Paquistão que inclui as regiões de Gilgit e Baltistão predominam pastores muçulmanos descendentes de tadjiques e afegãos. No lado leste, no Ladakh indiano e em Aksai Chin, porção chinesa, vivem os budistas com fortes traços mongóis. Ao sul, em Jammu, estão a maior parte dos hindus que vieram do Punjab, além de alguns sikhs. Mas é na região central, no Vale da Caxemira propriamente dito, que estão aqueles que se denominam caxemirianos, mais de 95% muçulmanos. Um povo hospitaleiro, amável e muito orgulhoso de seu vale, diferente em língua e cultura de seus vizinhos. Apesar do que diz o governo de Nova Délhi, esse lugar definitivamente não é a Índia.
Militares, barricadas e arames farpados não conseguiram tirar a beleza do Vale da Caxemira e de Srinagar, a capital de verão da região. Cercada pelas montanhas nevadas do Himalaia, a cidade foi a sede de diversos governos que levantaram algumas fortalezas ainda hoje ocupadas pelo Exército, mas também magníficos templos, mesquitas e jardins à beira do calmo Lago Dal.
O lago é o centro da vida na cidade, com ilhotas, plantações e até mercados flutuantes. De um lado ficam os jardins construídos pelos imperadores do período mongol há mais de 500 anos. Do outro, a fabulosa mesquita branca de Hazart Bal, mais importante local de reunião para os muçulmanos, como os mais de 15 mil, que no último dia 3 de maio, data do nascimento do profeta Maomé, ouviram o clérigo Bashir Aamad Farroqi fazer seu sermão cercado por policiais com fuzis russos AK-47.
“Estamos numa boa fase, com os turistas voltando. Esta é a melhor temporada de verão dos últimos anos”, conta Haji Nook Mohammad Pakhtoon, dono de cinco houseboats (as confortáveis casas flutuantes no Lago Dal), um hotel que abriga parte do contingente do Exército indiano em Srinagar e uma empresa de exportação de produtos típicos da região, como tapetes, entalhes em madeira, tecidos finos e vestidos bordados. A previsão da temporada era de 90% de ocupação nas cerca de 980 houseboats. “O que não temos mais é paz de espírito, e o homem precisa de paz de espírito para viver”, diz Pakhtoon.
Os turistas que chegam até aqui costumam dispor de mais paz de espírito que os caxemirianos. A violência dificilmente atinge os viajantes, graças em grande parte ao fortíssimo esquema de segurança. Gulmarg é uma concorrida estação de esqui a 60 quilômetros de Srinagar. Localizada no distrito de Baramulla, um dos mais explosivos da Caxemira, Gulmarg é o mais perto que um estrangeiro pode chegar da Linha de Controle, e, conseqüentemente, da parte do território ocupada pelo Paquistão. A estrada até o resortt tem um soldado armado a cada 100 metros, checkpoints nos principais entroncamentos e postos de vigia nos telhados das casas. Apesar dos esforços das autoridades para conter as “infiltrações”, todos na região sabem das dificuldades em se guardar uma fronteira acima de
2 700 metros de altitude rodeada de neves eternas.
A forte presença e a atuação de tropas que não comungam de mesma religião, etnia, língua e costumes dos caxemirianos é, junto com a falta de representatividade política, o principal motor da revolta. “O povo caxemiriano tem sido testemunha de tanta miséria, humilhação e sofrimento que é difícil acreditar na paz, mas eu ainda tenho esperança em Alá”, diz o jornalista Mohammad Morifat Qadri. “As forças indianas podem vasculhar qualquer casa sem autorização, sem motivo, acabam pegando o que querem, estupram nossas mulheres e matam nossos filhos”, denuncia Syed Ali Geelani, presidente da Conferência Hurriyat de Todos os Partidos, organização que reúne vários partidos políticos e grupos separatistas da Caxemira.
Três vezes eleito para a Assembléia Estadual, Geelani é uma espécie de Yasser Arafat da Caxemira. Tem dezenas de prisões no currículo (entre 1962 e 1993 foi detido dez vezes num total de 114 meses de encarceramento) e, durante as eleições deste ano, passou diversos períodos em prisão domiciliar para deixá-lo longe de manifestações pelo boicote eleitoral. O cárcere, os 70 anos de idade e os problemas cardíacos, contudo, não o mantiveram distante de seu trabalho à frente da Conferência Hurriyat e do recém-formado Bureau de Direitos Humanos de Jammu e Caxemira como um dos mais importantes e radicais líderes separatistas da região. Embore empunhe a bandeira de todos os grupos rebeldes, Geelani, muçulmano, não esconde sua posição pessoal a favor da anexação da Caxemira ao Paquistão.
Existem pelo menos 12 grandes grupos de resistência atuando dos dois lados da Linha de Controle. Seguem três tendências políticas: independência total, anexação ao Paquistão ou constituição de um Estado autônomo ligado à Índia e ao Paquistão. Em comum, o desejo de expulsar os soldados e criar uma única Caxemira, seja ela independente, seja parte de outro país. “A maioria de nós continua lutando pacificamente pela liberdade, mas cada vez mais as pessoas estão desesperadas e acabam tomando atitudes extremas”, admite Mohammad Yaseen Malik, presidente da Frente de Libertação de Jammu e Caxemira (JKLF), um dos primeiros grupos a entrar na luta armada, mas que agora se dedica a enfrentamentos políticos.
Esse clima de conflito acaba afetando diretamente a economia, baseada no turismo, e a saúde da população. “Quando começamos a pesquisar as necessidades médicas para a implantação de nosso escritório, vimos que havia um grande problema de saúde mental associado ao conflito armado”, conta Stuart Zimble, diretor dos Médicos sem Fronteiras. “É uma região perigosa, com algo entre 700 mil e 1 milhão de soldados, o que significa um grande número de invasões, roubos e estupros, que fazem com que a população viva em estresse permanente.” A entidade presta cerca de 200 atendimentos diários em Srinagar, Kupuware (bem ao lado da Linha de Controle) e está abrindo uma nova base ao norte. Eles também têm um programa semanal de rádio com dramatizações e dicas de como lidar melhor com a tensão.
Outra entidade humanitária que atua na região é o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. “Desde o ano passado, o governo indiano tem tentado mostrar uma imagem melhor, o que nos permite difundir com mais liberdade as normas do Direito Internacional Humanitário, baseado nas Convenções de Genebra”, explica Robert Przedpelski, chefe da delegação da Cruz Vermelha no sul da Ásia. “Mas, na Caxemira, nossa atividade continua se concentrando em acompanhar o tratamento dado aos presos relacionados ao conflito.” Desde 1995, a Cruz Vermelha já realizou mais de 15 mil visitas.
Atualmente existem cerca de 1500 pessoas detidas em 20 prisões espalhadas pela Índia.
Mas se depender da vontade dos habitantes de Jammu, a capital de inverno da Caxemira, tudo fica do jeito que está. As duas capitais estão separadas por uma belíssima estrada que serpenteia as montanhas entre bandos de macacos rhesus, vilas encravadas nas escarpas, templos hindus e pastores nômades. Ao mesmo tempo, traça uma frágil ponte entre dois mundos que se estranham, embora ambos caxemirianos. A paisagem verde e branca do vale dá lugar aos tons de cinza, marrom e amarelo da planície do Punjab. Os traços físicos dos habitantes também mudam. Assim como a opinião sobre a independência da Caxemira. Jammu é a única área caxemiriana onde existem mais hindus que muçulmanos.
“A Caxemira é parte da Índia, somos um só povo e temos orgulho disso”, declara o livreiro Rajendra Gupte. “O povo do vale fala em independência porque é obrigado pelos terroristas”. Rashimi Sharma, estudante de sociologia, concorda: “Os caxemirianos querem a independência porque são muçulmanos, mas isso é um erro. O Estado não sobreviveria isolado porque o governo investe mais na região do que em muitas partes da Índia. É mais fácil conseguir um emprego em Srinagar do que em Jammu ou no sul do país”.
Jammu, de fato, não é muito diferente do resto da Índia. O centenário complexo de templos de Raghunath, bem no centro da cidade, facilmente rivaliza em beleza com outros centros hindus de Nova Délhi ou mesmo Jaipur. Mas é ao anoitecer que voltam as semelhanças com o Vale da Caxemira: um jipe militar cruza lentamente as ruas desertas com um alto-falante alertando os moradores a desconfiarem de pacotes abandonados. A 300 quilômetros daqui, em Srinagar, o medo não é menor. “Não existe vida noturna”, diz um observador internacional. “Praticamente todos os cinemas e bares que existiam fecharam na década de 80. As pessoas têm medo de sair à noite e cruzar com patrulhas ou grupos de militantes.” À noite, a guerra anda à solta. Entre hindus e muçulmanos.
Para Syad Ali Geelani, a espera tem sido longa demais. “Em 1947, o primeiro-ministro Jawaharlal Nehru afirmou que nunca obrigaria a Caxemira a ser parte da Índia. Depois, o Conselho de Segurança da ONU baixou 18 resoluções por uma consulta popular, todos assinados e aceitos pela Índia, mas nunca implementados. Em 1952, mais uma vez Nehru disse que a Índia sentiria muito se quiséssemos a independência, mas não nos forçaria. Desde aquele momento, buscamos pacificamente e com muito sacrifício evitar o confronto. Em 1987, o governador Farook Abdullah e a primeira-ministra Indira Gandhi fizeram um acordo para fraudar as eleições e acabaram com as esperanças de uma solução política.”
As novas eleições trazem novas possibilidades de diálogo, mas desde que todos sejam ouvidos. Caso contrário, a independência ou a autonomia poderiam apenas ser o início de um novo ciclo de conflitos internos. Os caxemirianos sonham em fazer o plebiscito, que deveria ter sido realizado em 1947 e que teria decidido o que seria da Caxemira. E esta é a luta de Geelani: “Ainda há uma forma simples e pacífica de solu-cionar a questão da Caxemira. É dar a chance ao povo de decidir seu futuro sem pressões, sem interferências e sob o controle da ONU”.