Qual Guerra Civil?

Janeiro 2005 - ANO VIII - Número 94

Na Colômbia, menos de 15 por cento dos assassinatos estão relacionados diretamente com o conflito entre exército, guerrilhas e paramilitares. E, na cidade-sede do Cartel de Cali, só 20 por cento das mortes têm a ver com o tráfico de drogas.

Texto e fotos: Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá

O domingo 14 de novembro, véspera de feriado, foi um dia bastante violento na cidade, reconfirmando as frias e altas estatísticas de criminalidade que já não são surpresa para a população. Seguindo os padrões estatísticos, das treze pessoas assassinadas (todos homens e jovens, o mais novo com 14 e o mais velho com 37 anos), doze foram mortas com armas de fogo. Somente três dos mortos não haviam sido identificados, sendo dois encontrados em áreas da periferia e um numa favela próxima ao centro da cidade. Na terça 16, quando confrontado pela imprensa com as 26 execuções do final de semana prolongado, o secretário de governo da prefeitura, Miguel Yusti, declarou apenas que “nos últimos dias temos presenciado uma seqüência de ajustes de contas entre pequenos delinqüentes”. Os números, perfil das vítimas, motivos, tipo de morte e mesmo a reação das autoridades poderiam facilmente ter saído das páginas policiais de qualquer grande cidade brasileira na mesma terça-feira. Mas a cidade em questão não é Recife, Rio ou São Paulo. É Cali, capital do departamento do Vale do Cauca e segunda maior cidade da Colômbia. O que chama a atenção, no entanto, e fica muito claro na fala do secretário, é que nenhuma das mortes teve qualquer relação com o conflito armado declarado na Colômbia – que recebeu dos Estados Unidos nos últimos três anos 3 bilhões de dólares para combater o que o governo chama de “guerrilha narcoterrorista” – e talvez nem mesmo com o narcotráfico.

Ao contrário do que se poderia supor, a crônica dessas mortes anunciadas revela com crueza uma estatística qua-se desconhecida no Brasil e pouco divulgada também no país vizinho: mais de 85 por cento dos assassinatos não têm relação direta com o conflito. Ainda mais surpreendente é o dado de que, na cidade-sede do antigo cartel dirigido pelos irmãos Rodríguez-Orejuela, apenas 20 por cento dos assassinatos estão relacionados ao tráfico de drogas. O restante seriam vinganças, guerras de gangues, brigas de vizinhos. De fato, a grande violência na Colômbia tem muito mais a ver com problemas econômicos, desestruturação familiar, desemprego, perda de valores morais e falta de perspectiva nas periferias das grandes cidades. A verdadeira guerra civil colombiana está muito mais próxima da realidade brasileira.

“Quando fui para a Colômbia em agosto de 2001, também tinha essa idéia de que o maior problema do país seria a violência associada à luta armada e demorei um pouco para compreender que na realidade o tema do conflito é usado pelo Estado como um instrumento para manter o status quo e evitar as reformas políticas e econômicas necessaries para a inclusão social”, conta Antônio da Silva, um economista brasileiro que desde 1996 atua em organizações humanitárias internacionais e já fez parte de equipes de paz da ONU em Angola, da Ação contra a Fome francesa no Sudão e dos Médicos Sem Fronteiras – MSF - em Angola, Usbequistão e Turcomenistão. Até o final de outubro, ele trabalhava como coordenador geral dos Médicos Sem Fronteiras em Cali, onde ajudou a estruturar um projeto inovador de reabilitação de pessoas atingidas pela violência urbana na cidade que rivaliza com Medellín e a Grande Bogotá pelo primeiro lugar em criminalidade do país.

Nos últimos seis anos, o Programa de Reabilitação Integral e Prevenção da Violência Urbana da Médicos sem Fronteiras em Cali, instalado no violento distrito de Aguablanca, onde vive um quarto da população da cidade – 550.000 pessoas –, atendeu cerca de 2.700 vítimas de violência. “Isso é pouco se pensarmos que entre janeiro e julho deste ano foram registrados mais de 1.800 assassinatos, que estatisticamente temos em média sete feridos para cada morto e que somente o hospital local recebe cerca de 3.000 feridos por ano”, admite a atual coordenadora Justine Simons. Entretanto, a concepção de reabilitação física e psicológica do projeto, integrando também as famílias das vítimas e conscientizando a população sobre os efeitos da violência, tornou-se uma referência nacional e deve passar a ser copiada por outras entidades e assumida por governos de outras cidades.

Até a entrada da MSF, os hospitais da Colômbia prestavam às vítimas de violência apenas os serviços médicos de urgência e atendiam as necessidades cirúrgicas. Não havia qualquer trabalho posterior de assistência psicológica ou fisioterapia. Através do Programa da MSF, depois dos cuidados hospitalares, as pessoas atendidas passam por uma assistente social que avalia sua situação geral; uma enfermeira que checa os procedimentos médicos realizados e a necessidade ou não de novas intervenções; um fisioterapeuta que analisa e aplica possíveis tratamentos para reduzir seqüelas; e um psicólogo que acompanha o impacto emocional do evento violento na vida do paciente e de seus familiares. Os pacientes com lesões graves (20 por cento dos atendidos) participam do programa em geral por seis meses e os lesionados menos graves por três meses.

Infelizmente, com o acirramento dos conflitos armadas em todo o mundo, os países doadores estão focando seu investimento em armas e tecnologias para a guerra. Com isso, várias entidades humanitárias estão sendo obrigadas a priorizar países e projetos de maior necessidade. Como o programa é um projeto sui generis para a MSF, entidade cuja característica principal é a atuação em situações de emergência médica normalmente associadas à guerra ou com assistência sanitária a populações que não podem contar com seus governos para isso, esse trabalho foi repassado para a administração pública de Cali.

  A ESE Oriente, empresa social do departamento de Cauca que assumiu totalmente o programa desde o dia 20 de dezembro, teve todos os equipamentos e infra-estrutura utilizados doados pela MSF e vem recebendo há meses treinamento e capacitação para seus profissionais. A coordenadora de promoção e prevenção, Luz Marina Valencia, garante que a entidade vai continuar seguindo a mesma filosofia e qualidade de atendimento da MSF. “Os pacientes estão aceitando bem a mudança e teremos condições de prestar um atendimento ainda mais amplo, já que transferimos o projeto para o posto de atendimento da Comuna 14-21 de Marroquín Cauquita, onde temos outros programas de saúde, como vacinação, pré-natal, exames ginecológicos etc”, diz.

  A estratégia da MSF para que essa promessa seja cumprida foi divulgar o trabalho na mídia colombiana; realizar uma exposição com fotografias e relatos dos pacientes (que resultou também no livro Histórias de Vida – Memórias no Corpo; envolver a comunidade com o apoio de seus líderes; capacitar mais de duzentos voluntários; e criar instâncias de fiscalização como os grupos de pacientes-ouvidores e a Liga de Usuários.

  Como o programa segue as normas internacionais de neutralidade da MSF e também os preceitos do juramento de Hipócrates de prestar assistência a todos os que necessitam, não existe discriminação das vítimas de violência, mesmo se forem também agressores. Junto com o sucesso das terapias, que permitiram a muitos pacientes sem esperanças voltar a andar, isso levou a uma grande aceitação por parte da comunidade e a uma nova forma de relacionamento entre as pessoas atendidas, em que as armas ficam de fora. Mas as histórias dos pacientes antes e depois do programa revelam mais uma vez o dramático quadro da violência na Colômbia. E novamente trazem imediatamente à lembrança os programas policiais vespertinos na televisão brasileira assistidos todos os dias por milhares de pessoas.

  São relatos como o de Frey Alberto Dagua, de 16 anos. Há quatro meses atrás ele estava indo de bicicleta para uma feira vender rifas quando foi atingido por cinco tiros nas costas e até hoje não sabe a razão. “A gente nunca teve nenhum envolvimento com drogas ou roubo, só estudava, namorava e tentava ajudar a família”, explica o irmão Jonathan, de 15 anos, que foi obrigado a parar de estudar e se mudar para Cali para poder levar e trazer o irmão para as seções de terapia. Preso a uma cadeira de rodas e sem saber se vai voltar a andar, Frey também parou de estudar, com vergonha dos colegas de escola. Seu caso pode ter sido tanto um simples roubo de bicicleta, em que os bandidos não tinham qualquer respeito pela vida alheia, como uma tentativa de execução contra o alvo errado.

  Igualmente trágica é a história dos irmãos Wilfredo e Yeferson Cabezas, de 23 e 22 anos. Eles estavam numa festa em Aguablanca quando apareceu o ex-namorado de uma garota que conversava com Yeferson. O rapaz não teve tempo de esboçar qualquer reação antes de ser atingido por quatro tiros no tronco e mais dois na nuca quando já estava caído. Ele teve uma séria lesão medular que afetou não somente os movimentos, como também a fala e a coordenação mental. “Ele está vivo por milagre”, conta o irmão acrescentando que o agressor foi morto poucos dias depois, mas que não sabe quem o matou. Yeferson também não tinha qualquer relação com os grupos armados ilegais ou com o tráfico internacional de drogas. Era somente um empregado braçal que trabalhava numa pizzaria/churrascaria na periferia de Cali. Eles se esforçam muito na fisioterapia para impedir a atrofia dos músculos, mas as esperanças de melhora significativa são pequenas.

  O comportamento machista das sociedades latinas em uma cultura que estimula a violência e a impunidade torna as festas um dos grandes fatores de risco para a juventude tanto na Colômbia como no Brasil. É o caso, por exemplo, de Daiana dos Santos Munhoz, de 20 anos. No dia 31 de outubro, ela estava numa festa de dia das bruxas quando foi atingida por uma bala perdida no braço direito. “Não sei de onde veio o tiro, quem estava brigando e nem por que”, afirma. “Agora estou com o braço assim inchado e vim ver se alguém pode me ajudar.” “O número de mulheres que buscam nosso programa é bem menor do que o de homens, mas vem crescendo, talvez pela melhor divulgação que temos conseguido”, afima Justine Simons.

  Outra vítima que diz não ter envolvimento com crime ou drogas é “Carlos”, um jovem de 25 anos com medo de ser perseguido pela polícia se tiver o nome verdadeiro publicado. Há dois anos, o rapaz, que trabalhava numa empresa de vulcanização de pneus, estava bebendo num bar no centro da cidade às 9 da noite com um revólver na cintura. “Tinha a arma apenas porque gostava, me dava segurança, achava legal, sei lá”, conta. “O problema é que teve uma blitz da polícia, eu estava bêbado, me apavorei e tentei sair correndo.” O policial que estava na viatura deu um único tiro e acertou Carlos bem no meio das costas, atingindo a espinha. “Eles me puxaram pelas calças e eu não sentia minhas pernas, então meu irmão apareceu e exigiu que os policiais me levassem para o hospital. Tenho muita raiva dessa situação, mas hoje vejo que a solução para a violência na Colômbia é desarmar as pessoas e os corações.” E ele bem pode estar certo. Um revólver de fabricação caseira pode ser conseguido facilmente na Colômbia pelo equivalente a 200 ou 300 reais.

  Do lado oposto, e dez anos mais velho, está Oscar Salazar. Com mais da metade da vida atrás das grades por diversos crimes, ele encontrou uma vez um inimigo dentro da cadeia que, de alguma forma, conseguiu uma arma e atirou várias vezes contra ele sem conseguir acertá-lo. Salazar foi transferido e posteriormente solto. Ele não conta o motivo da rixa, mas o fato é que, quando saiu da prisão, o inimigo o perseguiu com uma moto e lhe deu três tiros à queima-roupa na barriga. “As pessoas achavam que eu estava morto e roubaram tudo o que tinha”, conta. “Aí, alguém percebeu que eu estava vivo e chamou a ambulância, mas só acordei no outro dia, com tubos por todos os lados e sem sentir as pernas.” No hospital, os médicos disseram que ele jamais voltaria a andar, mas Salazar recebeu uma visita da promotora de MSF que contou sobre o programa e lhe deu uma esperança: “Sinceramente, com todo o equipamento, dedicação e cuidado pessoal que tive, hoje me sinto 90 por cento recuperado, posso andar com muletas, numa bicicleta adaptada.”

  “Para uma população total de 45 milhões de habitantes, 69 por cento estariam abaixo do índice de pobreza e 10 milhões seriam indigentes”, cita o ex-diretor da União Cristã Universitária da Colômbia, Jorge Atiencia. “Assim, é fácil entender que a questão da delinqüência está muito mais ligada à justiça social do que a qualquer outro fator, como narcotráfico ou guerrilha.” Isto só não estaria sendo dito claramente com maior ênfase porque, na verdade, a elite ainda não está sendo atingida pela violência com a mesma intensidade. Antônio Silva concorda com essa tese e recorda um antigo slogan das FARC que dizia: “Enquanto a elite não sentir na pele o terror, nada vai mudar”.

  Segundo Silva, apesar de processos históricos diferentes, o grande responsável pela violência que assola grande parte da América Latina é o mesmo: somos repúblicas de privilégios. “De modo geral, a população não tem consciência de que tem direito a saúde, educação, trabalho e segurança. O privilégio de ter carro, estudo e emprego passou a ser encarado como normal e nem mesmo as entidades de direitos humanos conseguem passar essa noção para a população. Enquanto não conseguirmos mudar a mentalidade do Estado de privilégio para o Estado de direito, os governos continuarão tratando a questão da segurança com repressão e mais violência.”

  E o ciclo continua!

"Carlos", que tentou fugir da polícia e foi atingido nas costas.
Salazar, que passou mais da metade da vida na cadeia e sofreu duas tentativas de assassinato.
Daiana, que foi pega por uma bala perdida numa festa, e sua jovem acompanhante grávida.
Yeferson, o que foi baleado porque conversava com uma garota, cujo namorado o alvejou.

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