Ed # 22
 
                 
               
               
                 
     
     
   

Crise de identidade

Passagem de Lula pelo Fórum Social Mundial explicita a crise do governo, dos movimentos populares e do próprio FSM. Mas, como no ideograma japonês, crise também é oportunidade e entre o Woodstock e a Revolução, a juventude se articula para mudar o mundo.

Textos e Fotos: Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá

A fugaz participação do presidente Luíz Inácio Lula da Silva no V Fórum Social Mundial em Porto Alegre, não podia ser mais simbólica da tragetória de seus dois anos de governo e do impacto que esta administração vem tendo nos movimentos populares, na juventude engajada, na intelectualidade, na classe média, na estrutura de poder, na visão que o mundo tem do Brasil… Além da crise de identidade pela qual passa o próprio Fórum.

Em sua visita anterior ao FSM, em 2003, Lula era um líder recém-empossado com amplo apoio popular. Ele fez um discurso arrebatador para dezenas de milhares de pessoas emocionadas, ao ar livre e com o sol se pondo atrás no Guaíba. Dois anos depois, no mesmo FSM, o presidente precisou de um incrível aparato de segurança para impedir manifestações públicas, com seguranças prendendo jovens que o vaiavam e o chamavam de traidor. Uma pequena claque paga tentou aplaudir mais alto que as vaias, os cerca de 30 minutos de discurso. Nas manchetes dos jornais, mais interesse no novo avião da presidência do que no discurso em si.

"Eu estava meio bêbada no outro Fórum, festejando nossa vitória, com tanta esperança, mas lembro bem da multidão gritando OITO ANOS, OITO ANOS!!! E o Lula dizendo que havia sido eleito para quatro anos de mandato", diz Tica, líder estudantil e participante da Marcha Mundial das Mulheres. "Este ano eu não tive o menor interesse em ouvir ele novamente. A gente tá vendo o que tá acontecendo e o plano de perpetuação no poder, a saída é lutar e esquecer o governo".

Sai Lula entra Chávez


Na verdade, Lula disse muito mais do que isso em 2003. Depois de afirmar que não tinha sido eleito com apoio de canais de TV nem do sistema financeiro internacional, ele declarou que: "o único e mais importante compromisso que eu tenho com vocês é que eu possa cometer algum erro, mas que jamais negarei uma vírgula dos ideais que me fizeram chegar à Presidência da República do nosso país".

Definitivamente não é o que pensam as centenas de integrantes do Partido dos Trabalhadores e dezenas de membros do governo que saíram ou foram expulsos do PT ou demitidos dos ministérios e autarquias. A maior parte deles companheiros históricos de Lula e ativistas sociais. As eleições para prefeito em 2004 reforçaram o recado popular, com o PT perdendo capitais importantes como São Paulo e a própria Porto Alegre, onde estava no poder há 16 anos. E tudo ficou ainda mais claro com a recepção do Fórum ao presidente venezuelano Hugo Chávez, que num discurso anti-Bush e de integração latino-americana através da complementaridade e não da competitividade, tomou o lugar de Lula como principal líder de esquerda das Américas.

Pra suíço ver


Ignorando tudo isso, Lula saiu direto de Porto Alegre para Davos, na Suiça, para o Fórum Econômico Mundial. Lá, o mesmo velho discurso de combate mundial à fome, agora sob aplausos de Bono Vox, Bill Clinton, Sharon Stone e Bill Gates. Claro, você acha que alguém no mundo vai assumir que é a favor da miséria e da fome???? A imagem do Brasil no exterior não podia ser melhor, e para todos os públicos.

Se por um lado, em Davos, a manutenção de uma linha econômica ortodoxa (com superavits fiscais para pagar a dívida externa e aumento dos juros básicos para segurar a inflação) tem recebido elogios rasgados de entidades "isentas" como o FMI e o Banco Mundial. Por outro, a posição clara contra a invasão do Iraque, o estreitamento de relações com outros países em desenvolvimento como Índia, China e África do Sul e a maior integração latino-americana foram os pontos altos na política externa brasileira ressaltados no FSM. A exceção é o envio de tropas, mesmo sob os capacetes azuis da ONU, para garantir o golpe de estado no Haiti patrocinado pelos EUA.

Todos esses temas estiveram em discussão nas dezenas de tendas e espaços abertos do FSM. Para a juventude, no entanto, a decepção com o governo Lula parece estar sendo bem digerida. "Temos que ter em mente todo o processo histórico de chegada da esquerda ao poder no Brasil", afirma Thaís, uma estudante de enfermagem de Brasília. "Não é porque este não é o governo com que sonhávamos que vamos retroceder e entregar o país de volta a uma direita que nos colocou na situação atual". Ela diz que mesmo fora dos holofotes, a área de saúde pública tem evoluído bastante, e que isto é uma conquista de ativistas e movimentos sociais historicamente ligados ao PT e que somente com a eleição de Lula puderam colocar em prática projetos importantes, como a valorização do Sistema Único de Saúde e o fortalecimento da luta anti-manicômios.

Debates e atividades


Dos mais de 155 mil participantes do Fórum Social Mundial de 2005, cerca de 40 mil faziam parte do Acampamento da Juventude, no Parque Harmonia e na orla do rio Guaíba, entre os 11 grandes espaços temáticos do FSM. As enormes, quentes e sem-graça tendas brancas do "evento oficial" passavam a maior parte do tempo vazias devido a falhas na organização ou divulgação das palestras auto-gestionadas. E nos eventos com personalidades ou temas de grande destaque, como as palestras dos escritores Eduardo Galeano e José Saramago, de políticos como o ministro Gilberto Gil e os senadores Heloísa Helena e Eduardo Suplicy, ou debates com representantes da resistência iraquiana e sobre a problemática das armas e conflitos no Oriente Médio, tinham lotação esgotada e gente tentando acompanhar as discussões do lado de fora com o ouvido grudado na lona.

Já no Acampamento da Juventude, os espaços temáticos contaram com "construções ecológicas" de paredes de barro entre as árvores do parque. Lá, a falta de organização foi superada pelo jogo-de-cintura. O Espaço de Saúde e Cultura Che Guevara, por exemplo, era um dos principais centros do Acampamento, com exposição de fotos e atividades o dia inteiro, todos os dias. Ao mesmo tempo, eram realizadas campanhas de vacinação, distribuição de preservativos, atendimento médico a pessoas que passavam mal com o calor, além de sessões abertas e gratuitas de massagem e fitoterapia. Outros espaços como o de Diversidade Sexual e HipHop tinham uma programação intensa de shows e debates que iam noite adentro.

Pulando a noite toda


Os shows, aliás, foram um espetáculo à parte. A organização do evento planejou 14 palcos distribuídos pelo chamado Território Social Mundial. Na primeira noite do FSM, bandas locais, Gilberto Gil e Mano Chao, no palco principal, deram uma "palhinha" do que viria. Depois, Gil daria ainda uma "canja" num palco menor dentro do Acampamento da Juventude para poucas dezenas de felizardos. Outras bandas e ritmos de diversas partes do mundo invadiriam os demais palcos e tendas nas noites seguintes. Rock, reggae, blues, rasta, hip hop, rap, samba, batuques, América Latina, África e Oriente.

Numa única noite era possível assistir a um espetáculo de dança contemporânea ao som de cítaras num palco; passar por velhos hippies tocando violão e bongô ao lado da fogueira; por um tenda com militantes do MST tentando acompanhar a batida eletrônica-tecno; rastafaris balançando os dreadlocks e gritando Jah; e terminar a balada contagiado pela incrível mistura de salsa e rock dos venezuelanos do Palmeras Kanibales. A Venezuela é mesmo a "bola da vez"!

Nova fase


2005 marcou a última realização do Fórum em Porto Alegre. Em 2007 o evento está confirmado na África. Para o ano que vem, o Conselho Internacional decidiu realizar um Fórum descentralizado, ocorrendo simultaneamente em diversas partes do mundo. Os locais exatos devem ser definidos em uma nova reunião do Conselho em abril, mas Hugo Chávez se antecipou a este processo colocando Caracas na linha de frente. O balanço final do V FSM trouxe números que superaram as edições anteriores: 200 mil pessoas na passeata de abertura, 6.880 jornalistas, representantes de 135 países, 2.500 atividades, 2.800 voluntários e 352 propostas resultantes das discussões e assembléias.

Para quem participou de mais de um FSM, entretanto, a sensação é de esta edição fechou um ciclo e um novo se abre. Prova disso é que apesar do caráter não deliberativo do Fórum, um grupo de 19 notáveis, incluindo vários fundadores do FSM e dois prêmios Nobel, lançou um documento com 12 pontos chamado de Manifesto de Porto Alegre (a íntegra pode ser lida em português, espanhol, francês e inglês no site www.ipsterraviva.net) que traz propostas importantes como criação de uma taxa global contra a fome, a supressão dos paraísos fiscais, fim da dívida externa dos países pobres, imposição de moratória sobre a água potável e a exigência de mudança da sede de ONU para algum país do hemisfério sul. Apesar do documento não ter sido aceito como "oficial" pelo FSM, foi a forma que esses ativistas acharam para refutar as acusações de que o Fórum é uma "feira ideológica" que não leva a lugar nenhum.

Longe desta discussão, diversos grupos e movimentos aproveitaram bem a oportunidade do encontro de entidades e personalidades mundiais para crescer e se firmar no cenário, como o MST com o convite a Hugo Chávez no momento em que a Venezuela faz uma reforma agrária radical. Outros dois exemplos impressionantes são a Marcha Mundial das Mulheres (que passou de um pequeno grupo com reivindicações para erradicar a violência contra as mulheres há quatro anos, para um movimento com milhares de participantes em todo o planeta e uma agenda que inclui este ano manifestações em 53 países) e o pessoal da Aldeia da Paz (que passou de um grupo de meia dúzia de barracas em 2003 para um acampamento de mais de 500 pessoas este ano, reunindo sob uma bandeira comum de três bolinhas roxas diversas comunidades inspiradas em filosofias orientais, incenso, macrobiótica, hari krishna, canalização enérgica e a proposta de adoção de um calendário maia de 13 luas), representantes diretos de Woodstock e da Era de Aquário em Porto Alegre.

Depois de dez dias de sol escaldante no Rio Grande do Sul, entre as figuras mais esquisitas do planeta, passeatas pelos mais diversos objetivos, uma babilônia de idiomas, meninas com malabaris de fogo, shows memoráveis, uma nuvem de maconha constante no ar, o esgotamento físico e mental era grande. Mas num dos ônibus fretados que seguia de volta para a USP, os papos continuavam ecléticos, variando das qualidades da cerveja uruguaia Norteña a roubos no Acampamento da Juventude, episódios dos Simpsons em DVD pirata, apostas em que país o Bush vai atacar agora, bandas colombianas da atualidade, quem ia publicar as fotos digitais da turma, e também os rumos dos movimentos sociais, calendário de manifestações, início do ano letivo… Diversão, arte e revolução.
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