Crise de identidade
Passagem de Lula pelo Fórum Social Mundial explicita a crise
do governo, dos movimentos populares e do próprio FSM. Mas,
como no ideograma japonês, crise também é oportunidade
e entre o Woodstock e a Revolução, a juventude se articula
para mudar o mundo.
Textos e Fotos: Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá
A fugaz participação do presidente Luíz Inácio
Lula da Silva no V Fórum Social Mundial em Porto Alegre, não
podia ser mais simbólica da tragetória de seus dois
anos de governo e do impacto que esta administração
vem tendo nos movimentos populares, na juventude engajada, na intelectualidade,
na classe média, na estrutura de poder, na visão que
o mundo tem do Brasil… Além da crise de identidade pela
qual passa o próprio Fórum.
Em sua visita anterior ao FSM, em 2003, Lula era um líder recém-empossado
com amplo apoio popular. Ele fez um discurso arrebatador para dezenas
de milhares de pessoas emocionadas, ao ar livre e com o sol se pondo
atrás no Guaíba. Dois anos depois, no mesmo FSM, o presidente
precisou de um incrível aparato de segurança para impedir
manifestações públicas, com seguranças
prendendo jovens que o vaiavam e o chamavam de traidor. Uma pequena
claque paga tentou aplaudir mais alto que as vaias, os cerca de 30
minutos de discurso. Nas manchetes dos jornais, mais interesse no
novo avião da presidência do que no discurso em si.
"Eu estava meio bêbada no outro Fórum, festejando
nossa vitória, com tanta esperança, mas lembro bem da
multidão gritando OITO ANOS, OITO ANOS!!! E o Lula dizendo
que havia sido eleito para quatro anos de mandato", diz Tica,
líder estudantil e participante da Marcha Mundial das Mulheres.
"Este ano eu não tive o menor interesse em ouvir ele novamente.
A gente tá vendo o que tá acontecendo e o plano de perpetuação
no poder, a saída é lutar e esquecer o governo".
Sai Lula entra Chávez
Na verdade, Lula disse muito mais do que isso em 2003. Depois de afirmar
que não tinha sido eleito com apoio de canais de TV nem do
sistema financeiro internacional, ele declarou que: "o único
e mais importante compromisso que eu tenho com vocês é
que eu possa cometer algum erro, mas que jamais negarei uma vírgula
dos ideais que me fizeram chegar à Presidência da República
do nosso país".
Definitivamente não é o que pensam as centenas de integrantes
do Partido dos Trabalhadores e dezenas de membros do governo que saíram
ou foram expulsos do PT ou demitidos dos ministérios e autarquias.
A maior parte deles companheiros históricos de Lula e ativistas
sociais. As eleições para prefeito em 2004 reforçaram
o recado popular, com o PT perdendo capitais importantes como São
Paulo e a própria Porto Alegre, onde estava no poder há
16 anos. E tudo ficou ainda mais claro com a recepção
do Fórum ao presidente venezuelano Hugo Chávez, que
num discurso anti-Bush e de integração latino-americana
através da complementaridade e não da competitividade,
tomou o lugar de Lula como principal líder de esquerda das
Américas.
Pra suíço ver
Ignorando tudo isso, Lula saiu direto de Porto Alegre para Davos,
na Suiça, para o Fórum Econômico Mundial. Lá,
o mesmo velho discurso de combate mundial à fome, agora sob
aplausos de Bono Vox, Bill Clinton, Sharon Stone e Bill Gates. Claro,
você acha que alguém no mundo vai assumir que é
a favor da miséria e da fome???? A imagem do Brasil no exterior
não podia ser melhor, e para todos os públicos.
Se por um lado, em Davos, a manutenção de uma linha
econômica ortodoxa (com superavits fiscais para pagar a dívida
externa e aumento dos juros básicos para segurar a inflação)
tem recebido elogios rasgados de entidades "isentas" como
o FMI e o Banco Mundial. Por outro, a posição clara
contra a invasão do Iraque, o estreitamento de relações
com outros países em desenvolvimento como Índia, China
e África do Sul e a maior integração latino-americana
foram os pontos altos na política externa brasileira ressaltados
no FSM. A exceção é o envio de tropas, mesmo
sob os capacetes azuis da ONU, para garantir o golpe de estado no
Haiti patrocinado pelos EUA.
Todos esses temas estiveram em discussão nas dezenas de tendas
e espaços abertos do FSM. Para a juventude, no entanto, a decepção
com o governo Lula parece estar sendo bem digerida. "Temos que
ter em mente todo o processo histórico de chegada da esquerda
ao poder no Brasil", afirma Thaís, uma estudante de enfermagem
de Brasília. "Não é porque este não
é o governo com que sonhávamos que vamos retroceder
e entregar o país de volta a uma direita que nos colocou na
situação atual". Ela diz que mesmo fora dos holofotes,
a área de saúde pública tem evoluído bastante,
e que isto é uma conquista de ativistas e movimentos sociais
historicamente ligados ao PT e que somente com a eleição
de Lula puderam colocar em prática projetos importantes, como
a valorização do Sistema Único de Saúde
e o fortalecimento da luta anti-manicômios.
Debates e atividades
Dos mais de 155 mil participantes do Fórum Social Mundial de
2005, cerca de 40 mil faziam parte do Acampamento da Juventude, no
Parque Harmonia e na orla do rio Guaíba, entre os 11 grandes
espaços temáticos do FSM. As enormes, quentes e sem-graça
tendas brancas do "evento oficial" passavam a maior parte
do tempo vazias devido a falhas na organização ou divulgação
das palestras auto-gestionadas. E nos eventos com personalidades ou
temas de grande destaque, como as palestras dos escritores Eduardo
Galeano e José Saramago, de políticos como o ministro
Gilberto Gil e os senadores Heloísa Helena e Eduardo Suplicy,
ou debates com representantes da resistência iraquiana e sobre
a problemática das armas e conflitos no Oriente Médio,
tinham lotação esgotada e gente tentando acompanhar
as discussões do lado de fora com o ouvido grudado na lona.
Já no Acampamento da Juventude, os espaços temáticos
contaram com "construções ecológicas"
de paredes de barro entre as árvores do parque. Lá,
a falta de organização foi superada pelo jogo-de-cintura.
O Espaço de Saúde e Cultura Che Guevara, por exemplo,
era um dos principais centros do Acampamento, com exposição
de fotos e atividades o dia inteiro, todos os dias. Ao mesmo tempo,
eram realizadas campanhas de vacinação, distribuição
de preservativos, atendimento médico a pessoas que passavam
mal com o calor, além de sessões abertas e gratuitas
de massagem e fitoterapia. Outros espaços como o de Diversidade
Sexual e HipHop tinham uma programação intensa de shows
e debates que iam noite adentro.
Pulando a noite toda
Os shows, aliás, foram um espetáculo à parte.
A organização do evento planejou 14 palcos distribuídos
pelo chamado Território Social Mundial. Na primeira noite do
FSM, bandas locais, Gilberto Gil e Mano Chao, no palco principal,
deram uma "palhinha" do que viria. Depois, Gil daria ainda
uma "canja" num palco menor dentro do Acampamento da Juventude
para poucas dezenas de felizardos. Outras bandas e ritmos de diversas
partes do mundo invadiriam os demais palcos e tendas nas noites seguintes.
Rock, reggae, blues, rasta, hip hop, rap, samba, batuques, América
Latina, África e Oriente.
Numa única noite era possível assistir a um espetáculo
de dança contemporânea ao som de cítaras num palco;
passar por velhos hippies tocando violão e bongô ao lado
da fogueira; por um tenda com militantes do MST tentando acompanhar
a batida eletrônica-tecno; rastafaris balançando os dreadlocks
e gritando Jah; e terminar a balada contagiado pela incrível
mistura de salsa e rock dos venezuelanos do Palmeras Kanibales. A
Venezuela é mesmo a "bola da vez"!
Nova fase
2005 marcou a última realização do Fórum
em Porto Alegre. Em 2007 o evento está confirmado na África.
Para o ano que vem, o Conselho Internacional decidiu realizar um Fórum
descentralizado, ocorrendo simultaneamente em diversas partes do mundo.
Os locais exatos devem ser definidos em uma nova reunião do
Conselho em abril, mas Hugo Chávez se antecipou a este processo
colocando Caracas na linha de frente. O balanço final do V
FSM trouxe números que superaram as edições anteriores:
200 mil pessoas na passeata de abertura, 6.880 jornalistas, representantes
de 135 países, 2.500 atividades, 2.800 voluntários e
352 propostas resultantes das discussões e assembléias.
Para quem participou de mais de um FSM, entretanto, a sensação
é de esta edição fechou um ciclo e um novo se
abre. Prova disso é que apesar do caráter não
deliberativo do Fórum, um grupo de 19 notáveis, incluindo
vários fundadores do FSM e dois prêmios Nobel, lançou
um documento com 12 pontos chamado de Manifesto de Porto Alegre (a
íntegra pode ser lida em português, espanhol, francês
e inglês no site www.ipsterraviva.net) que traz propostas importantes
como criação de uma taxa global contra a fome, a supressão
dos paraísos fiscais, fim da dívida externa dos países
pobres, imposição de moratória sobre a água
potável e a exigência de mudança da sede de ONU
para algum país do hemisfério sul. Apesar do documento
não ter sido aceito como "oficial" pelo FSM, foi
a forma que esses ativistas acharam para refutar as acusações
de que o Fórum é uma "feira ideológica"
que não leva a lugar nenhum.
Longe desta discussão, diversos grupos e movimentos aproveitaram
bem a oportunidade do encontro de entidades e personalidades mundiais
para crescer e se firmar no cenário, como o MST com o convite
a Hugo Chávez no momento em que a Venezuela faz uma reforma
agrária radical. Outros dois exemplos impressionantes são
a Marcha Mundial das Mulheres (que passou de um pequeno grupo com
reivindicações para erradicar a violência contra
as mulheres há quatro anos, para um movimento com milhares
de participantes em todo o planeta e uma agenda que inclui este ano
manifestações em 53 países) e o pessoal da Aldeia
da Paz (que passou de um grupo de meia dúzia de barracas em
2003 para um acampamento de mais de 500 pessoas este ano, reunindo
sob uma bandeira comum de três bolinhas roxas diversas comunidades
inspiradas em filosofias orientais, incenso, macrobiótica,
hari krishna, canalização enérgica e a proposta
de adoção de um calendário maia de 13 luas),
representantes diretos de Woodstock e da Era de Aquário em
Porto Alegre.
Depois de dez dias de sol escaldante no Rio Grande do Sul, entre as
figuras mais esquisitas do planeta, passeatas pelos mais diversos
objetivos, uma babilônia de idiomas, meninas com malabaris de
fogo, shows memoráveis, uma nuvem de maconha constante no ar,
o esgotamento físico e mental era grande. Mas num dos ônibus
fretados que seguia de volta para a USP, os papos continuavam ecléticos,
variando das qualidades da cerveja uruguaia Norteña a roubos
no Acampamento da Juventude, episódios dos Simpsons em DVD
pirata, apostas em que país o Bush vai atacar agora, bandas
colombianas da atualidade, quem ia publicar as fotos digitais da turma,
e também os rumos dos movimentos sociais, calendário
de manifestações, início do ano letivo…
Diversão, arte e revolução.
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