18 de Setembro de 2005 - ANO 14 - Número 687

Segregados

Cerca de 5.000 brasileiros ainda vivem nos 33 asilos-colônias construídos para confinar os portadores de hanseníase

Valeriano Guilherme dos Santos, 64, com sua companheira Maria das Dores Gomes, 55

foto: Rachel Guedes

Da janela para o mundo

por Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá

"Eu tinha nove anos quando os guardas vieram, levaram minha mãe e botaram fogo em casa com tudo dentro. Tive de ir morar com três irmãos na casa do meu avô num sítio; meu pai não podia cuidar de todos sozinho", rememora Nivaldo Mercúrio, 77. "Só voltei a ver a mãe dois anos depois, mas a 10 m de distância. Ela não suportou o confinamento, morreu em cinco anos. Tinha 32."

À primeira vista, lembra relato de sobrevivente de guerra ou algo do gênero. A história de Nivaldo, e de tantos outros como ele, tem ingredientes como diáspora familiar, denúncias anônimas, fuga, perseguição policial, fichamento, clausura compulsória. Mas a infelicidade que atingiu primeiro sua mãe e depois ele próprio foi contrair, em pleno século 20, uma doença que existe e resiste desde a Antiguidade -a lepra.

Por incrível que pareça, cenas como a acima descrita eram a tônica da política nacional de saúde até quase o fim dos anos 1960, a década do paz, amor & liberdade. Tratados como criminosos, os portadores de hanseníase que não se apresentavam espontaneamente para o confinamento eram denunciados, e contra eles se expedia ordens de captura.

Caçados literalmente a laço pela polícia sanitária, fichados no DPL (Departamento de Prevenção à Lepra) e internados compulsoriamente em 35 asilos-colônias afastados das cidades, na maior parte das vezes os doentes nunca mais voltavam a encontrar a família. Os medicamentos de então eram ineficazes e quase nenhum alívio traziam às dores e seqüelas da doença. Desespero, depressão e loucura eram constantes nas colônias, onde regras rígidas regulavam a convivência. Bebidas alcoólicas, reclamações e tentativas de fugas eram reprimidas com violência e cadeia.

Com um histórico tão trágico, era de se esperar que os leprosários tivessem sido banidos do mapa, fossem recurso de filme antigo ou de um passado distante. No Brasil, porém, eles

resistem, assim como a própria doença -somos um dos nove países do mundo em que a hanseníase é endêmica.

Os 33 asilos ainda ativos no país -quatro no Estado de São Paulo- abrigam cerca de 5.000 pessoas. Agora nem todos doentes; boa parte dos moradores é sobrevivente dos tempos da internação compulsória, gente que perdeu totalmente o contato com os parentes e a vida fora dos asilos. Outro tanto são pacientes com família, mas que preferem permanecer meio longe do "mundo lá fora".

E têm suas razões. Ali moram de graça, um atrativo e tanto quando se sabe que atualmente a doença está restrita aos mais pobres. Depois de algumas tentativas fracassadas de reinserção dos ex-confinados na sociedade, a Secretaria da Saúde reconheceu em 1995 que o Estado tinha uma dívida social com eles e lhes garantiu o usufruto da casa em que viviam ou vagas em enfermarias e pavilhões comunitários, para aqueles que tivessem necessidades especiais, mais alimentação, remédios e pensão de um salário mínimo.

Além disso, o panorama legal e medicamentoso da hanseníase melhorou bastante, mas o estigma que sempre cercou a doença, não, o que inibe a vida fora da ex-colônia. A simples menção da palavra lepra ou da politicamente correta hanseníase, tornada oficial por uma lei federal de 1995, costuma despertar o medo milenar do contágio através do mero contato com o doente ou com qualquer objeto "contaminado".

Nada mais equivocado. Apesar de infecto-contagiosa, a hanseníase deixa de ser transmissível assim que o paciente inicia o tratamento com a poliquimioterapia (PQT), introduzida nos anos 1980. Sem contar que cerca de 80% da população é geneticamente resistente ao bacilo de Hansen e nunca vai ser contaminada (veja quadro ao lado).

Por essas razões, o protocolo definido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e seguido no Brasil determina que os portadores devem ser tratados sem internação, com cuidados apenas ambulatoriais, por um período entre seis meses e dois anos. Tudo isso reduziu a exclusão dos portadores e provocou algumas alterações no panorama dos ex-asilos.

Intimidação "Desde 1990, quando o primeiro casal de internos conseguiu autorização para criar a filha dentro da propriedade do hospital, por causa do Estatuto da Criança e do Adolescente que tornou mais difícil a separação de pais e filhos, o perfil dos moradores vem mudando lentamente", conta Maria Aparecida Hilário dos Santos, diretora social do Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes, no distrito de Cidade Nova, que concentra cerca de 40 mil dos 120 mil habitantes do município de Itu. "Já não é difícil encontrar numa casa duas ou três gerações da mesma família."

Localizado a 15 km do centro da cidade, o ex-Asilo-Colônia de Pirapitingüi virou um bairro de ruas arborizadas e jeito de interior. São quase 300 casinhas bigeminadas, algumas reformadas e com antenas parabólicas, que abrigam a maior parte dos 280 moradores em condições de viverem sozinhos. Outros 130 internos que requerem cuidados ficam nas enfermarias, no hospital psiquiátrico ou num dos dois pavilhões coletivos.

Dentro dos 330 hectares cercados por arame farpado e mantendo ainda a imponente portaria, onde param os ônibus vindos de Itu ou Sorocaba, existem casas e prédios abandonados, quase em ruínas, como o antigo edifício da cadeia. Tem ainda um pequeno comércio gerido pelos próprios internos, como a loja da Caixa Beneficente, e áreas comuns, como o grande refeitório que distribui comida aos internos que quiserem. E igrejas, muitas igrejas, católicas, protestantes, evangélicas, espíritas.

Dos cerca de 650 habitantes do "Pira", 72 são menores de 12 anos. Pacientes que recebem tratamento para a hanseníase ou, mais comum, para seqüelas e problemas relacionados são 408, pouco mais de 100 remanescentes do tempo da "compulsória". Os doentes novos não chegam a uma dúzia.

Com isso, a média de idade é de 60 anos, com alguns moradores acima dos 100. "Aqui quase não há problemas cardíacos relacionados a estresse, o mais comum são diabetes e hipertensão por causa da idade ou as antigas seqüelas da hanseníase", explica Maria Aparecida. "Eles têm uma proteção social e médica que não se encontra lá fora."

Dos 585 funcionários do hospital, 40 são médicos, e o orçamento da instituição para 2005 é de R$ 13,5 milhões. Quantas vilas com menos de mil habitantes no Brasil contabilizam recursos desse nível?

Entre os poucos moradores que não são hansenianos ou parentes desses, estão alguns funcionários do hospital e quatro famílias de policiais, dois da Polícia Militar e dois da Guarda Metropolitana de Itu, convidados a morar na colônia para ajudar a coibir assaltos e invasões dos imóveis abandonados.

Por mínimo que seja, esse amparo social vira atrativo diante da exclusão social das periferias. Graças a ele, os moradores idosos costumam "contratar" empregadas domésticas que acabam engravidando e se mudando para a residência dos "patrões". O benefício é morar gratuitamente em casa com luz e água encanada, enquanto o marido viver, além da pensão paga pelo Estado. O lado ruim é passar para o "outro lado da cerca" e ter de enfrentar o estigma do antigo leprosário.

O preconceito e a ignorância não raro redundam em violência, especialmente contra os jovens. Filha de hansenianos, Adriana Sturaro, 33, mora em Pirapitingüi desde a adolescência, época em que manifestou os primeiros sintomas. A doença a fez perder longos períodos de estudo e, aos 18, teve de fazer a sexta série em uma escola fora da colônia. "Mas descobriram que eu morava aqui e passaram um bilhete me ameaçando. Uns dias depois entrou no pátio um cara grandão, de cabelo comprido e veio direto para mim. Ele me bateu tanto que eu desmaiei e tive de ser levada para o hospital."

O episódio provocou a expulsão da diretora -e outra interrupção. Adriana conseguiu completar os estudos num curso supletivo, mas, ressabiada, dizia a todos que morava no bairro de Cidade Nova. Até hoje, diz ela, raramente sai da colônia. "Dói muito a gente ser discriminada. Uma vez fui a um mercado e tive que jogar o dinheiro no balcão, porque a vendedora não queria chegar perto de mim."

"É mais fácil trazer o sadio para dentro de um bairro que possui toda essa infra-estrutura montada, do que tentar integrar plenamente os seqüelados numa cidade fora daqui", admite o diretor-geral do hospital, Márcio da Cruz Leite. "Isso seria uma fantasia."

Os moradores do Pira sabem disso -e escolheram a cerca que os protege da realidade.

Eficiência paulista

Dirigido pelo médico Francisco de Salles Gomes Jr. na metade do século passado, o DPL em São Paulo funcionava de forma mais eficiente e implacável do que em qualquer outra unidade da federação. Nos 15 anos em que Gomes Jr. ficou à frente do departamento, mais de 22 mil doentes foram fichados. Estima-se que, no início da década de 1950, cerca de 16 mil brasileiros estivessem confinados nos 35 asilos-colônia criados a partir de 1920 em todo o Brasil -10 mil deles em São Paulo.

A política de internação compulsória existiu oficialmente até 7 de maio de 1962, quando foi encerrada por um decreto do então primeiro-ministro Tancredo Neves, durante o breve período parlamentarista no Brasil. Em São Paulo, porém, a interpretação era de que um decreto não poderia revogar uma lei, no caso, a de 1949, que impunha a compulsória. Com isso, no Estado, o DPL só acabou mesmo em 1967.

Escritor perseguido

Nem as dezenas de médicos dos quais Marcos Rey foi amigo nem os colegas da Rede Globo, TV Excelsior e TV Record, onde trabalhou, jamais desconfiaram que seus dedos em formato de garras fosse seqüelas da hanseníase. Só no ano passado, a biografia "Maldição e Glória - A Vida e o Mundo do Escritor Marcos Rey", de Carlos Maranhão, tornou público o problema.

Morto em 1999, aos 74, o autor de 40 livros, como "Memórias de um Gigolô", e roteirista de dezenas de filmes, séries e novelas, como "O Sítio do Pica-pau Amarelo" e "A Moreninha", contraiu a hanseníase ainda na infância -não se sabe ao certo como, já que não existiam outros casos na família.

Aos 14 anos, Rey já apresentava algumas deformidades nas mãos e nos pés, o que provavelmente levou algum vizinho a denunciá-lo às autoridades sanitárias. Por três anos a família conseguiu escondê-lo dos agentes do DPL. Mas em outubro de 1941, aos 17, o escritor -cujo nome verdadeiro era Edmundo Donato- foi capturado a laço pelos guardas sanitários do DPL, quando tentava correr de um bilhar na praça Marechal Deodoro, apesar das seqüelas que a doença já produzia em seus pés, deformados pelo mal perfurante plantar. Foi levado amarrado para o Asilo-Colônia Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes.

O pseudônimo que adotou quando começou a escrever também o ajudaria a despistar o DPL nos anos em que passaria escondido no Rio de Janeiro, depois de fugir do Hospital Padre Bento, em Guarulhos, em 1945. Em São Paulo, uma "ordem de captura" contra Rey vigorou até 1967.

O Brasil no ranking

O Brasil é o segundo país no mundo em número total de casos de hanseníase, com 49.384 novos casos diagnosticados em 2004 (sendo 3.000 com menos de 14 anos). Em primeiro lugar está a Índia, com 260 mil novos doentes anuais.

Quando o critério é a taxa de prevalência, porém, as posições mudam. A OMS considera a doença endêmica quando uma área registra mais de um caso para cada 10 mil habitantes. Neste ranking, com dados deste ano, o Brasil pula para o quinto lugar.

Para combater a situação vexaminosa, o governo federal lançou em 1999 o PNEH (Programa Nacional de Eliminação da Hanseníase), no qual se comprometia a deixar de ser área endêmica até o final deste ano. Já é certo que não vai conseguir.

O segundo objetivo, marcado para 2010, é ter menos de 1 caso por 10 mil habitantes. Pelos dados atuais, será uma meta bem difícil. Só os três Estados mais populosos (São Paulo, Rio e Minas) atingiram o índice. Os próprios médicos resistem a participar mais efetivamente do PNEH, —por desinformação e os mesmos preconceitos que a população em geral, segundo o diretor do Departamento de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde, Expedito Luna.

"A melhor forma é descentralizar os serviços, incorporando o PNEH ao Programa Saúde da Família, que já tem 22 mil equipes atendendo principalmente as populações mais carentes e afastadas, que é onde a hanseníase ataca mais fortemente", diz. Com base nessa crença, o ministério contratou 35 profissionais que vão atuar nas secretarias estaduais de saúde, treinando os agentes comunitários para aderir ao programa.

OS NOVE PAÍSES COM HANSENÍASE ENDÊMICA

Casos por 10 mil habitantes*

1º Madagascar 2,5
2º Moçambique 2,4
3º Rep. Dem. do Congo 1,9
4º Nepal 1,8
5º Brasil 1,7
6º Angola 1,6
7º Índia 1,4
8º Tanzânia 1,3
9º Rep. Centro-Africana 1,1


* Dados de 2005
Fonte: OMS (Organização Mundial da Saúde)

A hanseníase

O que é - É causada por um micróbio, o Mycobacterium leprae, conhecido como bacilo de Hansen, que ataca pele e nervos, principalmente de braços e pernas

Sintomas - O primeiro são manchas esbranquiçadas ou avermelhadas em qualquer parte do corpo. As áreas afetadas perdem progressivamente a sensibilidade e reduzem a produção do suor, o crescimento dos pêlos e atingem os nervos. O comprometimento dos nervos e a redução da função motora de mãos e pés ocasionam as deformidades

Contágio - A contaminação ocorre pelo ar, por meio da respiração, mas somente em contato prolongado, freqüente e contínuo com pacientes que não recebem nenhum tipo de tratamento. Entre 70% e 80% da população tem resistência natural ao bacilo

Tratamento - Chamada de poliquimioterapia (PQT), à base de três tipos de antimicrobiano, é feita gratuitamente na rede básica de saúde. Pode levar de seis a 24 meses. Quanto mais precoce for o diagnóstico, maiores as chances de matar o bacilo, obter cura rápida e evitar deformações

Fonte: Cacilda da Silva Souza (Sociedade Brasileira de Hansenologia)



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