São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 2005

AMÉRICA DO SUL

Na Colômbia, minas atingem três por dia

Com mais de 13% dos incidentes registrados no mundo, o país fica atrás só do Camboja e do Afeganistão

As colombianas Carmem Gallego e sua filha, Cláudia, cujo pai, Ramon, morreu após pisar em uma mina, em 2002, em Cocorná

TEXTOS E FOTOS:
VINICIUS SOUZA
MARIA EUGÊNIA SÁ
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE BOGOTÁ

Era uma tarde tranqüila de dezembro de 2002 quando a menina Cláudia Celeny Gallego, então com dez anos, resolveu acompanhar os pais à cidade por uma estrada de terra. De um minuto para o outro, sua vida mudou completamente. O pai, Ramon Ocampo, pisou em uma mina antipessoal, a chamada "quebra-patas", e teve de ser arrastado, inconsciente, para o hospital. Ele morreria no dia seguinte, véspera de Natal, deixando sem sustento uma família que hoje vive de favor numa pequena casa no município de Cocorná.
Histórias como essa estão se tornando cada vez mais freqüentes na Colômbia. Segundo informe anual da Landmine Monitor, entidade internacional que desde 1999 produz relatórios sobre as minas no mundo, a Colômbia ocupa hoje o terceiro lugar no ranking dos países com mais vítimas de minas antipessoal, atrás do Camboja e do Afeganistão.
O fenômeno seguiu a intensificação dos conflitos desde que foram encerradas as negociações de paz entre governo e guerrilhas, com a posse do atual presidente, Álvaro Uribe, em 2002.
Como o Camboja já encerrou seus conflitos há mais de uma década, e o Afeganistão está em processo de estabilização, a Colômbia é séria candidata a assumir o topo da lista. Com duas a três pessoas atingidas por explosões de minas terrestres todos os dias, o país responde por mais de 13% dos incidentes desse tipo no mundo.


Amputação

É o caso de Aurélio Clavino Gomez, de 11 anos. Com a família expulsa de seu sítio pela guerrilha, ele estava, no dia 16 de agosto último, caçando algo para completar o almoço. "O pai e o cachorro passaram pela trilha na frente dele, mas a mina só explodiu quando o menino pisou", conta a mãe, Flor Elba Gomez. O pai correu com ele nos braços procurando ajuda na auto-estrada próxima e conseguiu uma carona para a distante capital do Departamento de Antioquia, Medellín, que concentra o maior número de acidentes com minas no país. Mas seu esforço não foi suficiente para salvar o pé do filho, que teve de ser amputado. O menino ainda aguarda uma prótese prometida pelo Estado.
"As minas estão destruindo famílias inteiras", afirma Nancy Marín, facilitadora do programa de prevenção de acidentes com minas da ONG Corporação Paz e Democracia no município de Cocorná. "Basta olhar para os Ramirez".

Aurélio Clavino Gomez teve um pé amputado depois de pisar numa mina enquanto seguia o pai numa caçada
A matriarca do clã, Maria Consuelo, enterrou o marido, um filho e tem de cuidar de outro, paralítico, todos vítimas de um acidente quando trabalhavam recolhendo areia para construção em uma encosta de rio. Além deles, um outro filho também perdeu um pé em uma mina antipessoal, em um outro incidente.
"Mais de 80% das pessoas contabilizadas desde 1990 sofreram seus acidentes nos últimos cinco anos", informou o coordenador de cooperação da Cruz Vermelha no país, José Antonio Delgado. "A Colômbia é o único país das Américas em que os grupos armados continuam plantando minas quase todos os dias", afirmou María Clara Ucrós, diretora de comunicação da Campanha Colombiana Contra as Minas (CCCM).
Somente neste ano, até o dia 1º de novembro, o Observatório de Minas da Vice-Presidência da República somava 799 novos casos espalhados por 31 dos 32 Departamentos da Colômbia.
Diferente de países já fora de conflito, como o Camboja, onde 99% das vítimas são civis, na Colômbia a intensificação dos combates tem feito dos soldados os mais atingidos. Logo na entrada do Batalhão de Sanidade de Bogotá, a estátua de um soldado usando um detetor de metais aponta para o perigo. "Só neste hospital estão mais de 1.200 feridos, muitos por minas", explica o capelão José Moreno.
Numa rápida conversa com alguns soldados é fácil descobrir que a maioria tinha baixa patente e optou pela carreira militar para fugir do desemprego.
Legislação

"Os militares ao menos têm um resgate mais rápido e uma rede de proteção social maior do governo", diz o assessor jurídico da Fundemos, Fidel Martinez. "Não existe uma legislação específica para sobreviventes civis de minas, e a única lei geral que dá alguma ajuda a vítimas do conflito exige uma enorme burocracia." Segundo ele, a maioria dos feridos civis nem sequer sabe ler e, se não houver um trabalho maior de divulgação dessa lei, o Estado vai continuar falhando em sua obrigação de prestar uma assistência mínima às vítimas.
Em 2004, segundo o Landmine Monitor, foram registrados 215 acidentes com civis. Destes, 65 atingiram crianças.
A Cruz Vermelha e o Unicef são as únicas entidades internacionais financiando programas para diminuir o impacto das minas na população colombiana. "Não sabemos exatamente quais são as zonas mais afetadas", informa o chefe da delegação da Cruz Vermelha, Juan Pedro Schaerer. "Além disso, quando se decidir fazer uma "desminagem" geral, a extensão e geografia do país, com cordilheiras e selvas, tornarão o trabalho muito difícil."

O Soldado Lopez, mutilado por uma mina, e sua filha, em Bogotá
Apenas as Farc admitem usar os explosivos

Apesar do aumento incontestável no número de vítimas na Colômbia, só as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) admitem abertamente o uso de minas. Segundo declaração recente divulgada pelos meios de comunicação do país, a guerrilha de esquerda se afirma pobre, sem condições de adquirir armamentos mais sofisticados.
Já o ELN (Exército de Liberação Nacional), segundo maior grupo guerrilheiro de esquerda do país, tem uma posição oficial contrária. Durante o Primeiro Fórum Internacional de Minas Antipessoal, Atores Armados Não-Estatais e Acordos Humanitários, seu porta-voz, Francisco Galán, trouxe uma mensagem do comando do ELN informando que a guerrilha obedece aos princípios do direito internacional humanitário e não utiliza minas de forma indiscriminada.
Para especialistas, entretanto, o ELN é um dos que mais minam o país, pois essa seria uma de suas poucas formas de defesa.
Os paramilitares de direita, a maioria em processo de desmobilização sob a Lei de Justiça e Paz -acusada pelas organizações de direitos humanos de promover a impunidade-, simplesmente não se pronunciam a respeito. Há denúncias freqüentes de que as Autodefesas Unidas da Colômbia, guerrilha de direita, fazem o trabalho sujo do Exército, o que incluiria o uso de minas.
O governo é signatário do Tratado de Ottawa e, portanto, teoricamente, não poderia utilizar, estocar ou transportar esses artefatos. Os signatários do tratado também se comprometem a limpar os campos minados e a prestar assistência às vítimas.
Mas a base militar que protege as torres de comunicação no morro de Munchique, no departamento de Cauca, ainda mantém placas de campo minado. "As placas permanecem por precaução, para o caso de ter sobrado alguma mina no terreno", diz o tenente José Quintero. (VS e MES)
América Latina tem mais dez países minados

Apesar de a Colômbia ser o único país com uma guerra civil em andamento na América Latina, outros dez países da região ainda registram vítimas de minas terrestres quase diariamente.
Nicarágua, El Salvador e Guatemala, na América Central, continuam sofrendo os efeitos de guerras, guerrilhas e contraguerrilhas do final do século passado. Não há informações claras sobre Cuba, que não assinou o Tratado de Ottawa e possui campos minados pelo menos no entorno da base americana de Guantánamo.
Na América do Sul, ainda existem minas da época das ditaduras militares nas fronteiras do Chile com a Argentina e a Bolívia, e entre Peru e Equador. A Venezuela também registrou um incidente com mina em 2004, mas até agosto deste ano ainda não havia iniciado a prometida limpeza de seis campos minados que protegem instalações da Marinha.
Na América do Norte, o Canadá é um dos principais incentivadores das ações contra as minas, tendo sediado o encontro que culminou na assinatura do tratado de banimento dessas armas.
Já os EUA jogam um jogo duplo. Por um lado, o país se recusa a assinar o tratado, alegando que não vai abrir mão preventivamente de uma arma de que poderá necessitar no futuro. Por outro, afirma que não utiliza esses artefatos em nenhum lugar do mundo, apesar de ter sido confirmado o recebimento de carregamentos de minas nas guerras de Kosovo e do Iraque.
O fato é que foram registradas 74 baixas entre militares norte-americanos vítimas de minas entre 2001 e 2003 no Afeganistão e no Iraque. Talvez por isso os EUA sejam hoje o maior doador individual de recursos para o combate às minas.
Dos US$ 96,5 milhões entregues em 2004 pelo país para programas humanitários de ações contra as minas em 31 países, porém, US$ 35,8 milhões foram gastos somente no Iraque. (VS e MES)
Soldados protegem torres de comunicação no Departamento de Cauca, Colômbia. Todo o terreno em volta também está minado
O capelão militar José Moreno empurra a cadeira de rodas de um soldado no Batalhão de Sanidade. Mais de 1.200 feridos

40 países ignoram o acordo contra minas


O Tratado de Ottawa, acordo que proíbe a fabricação, a comercialização, o transporte, o armazenamento e a utilização das minas antipessoal, foi estabelecido em 1997, medida que rendeu o Prêmio Nobel da Paz à Campanha Internacional pelo Banimento das Minas Terrestres (ICBL, na sigla em inglês).
Desde então, 147 países aderiram ao Tratado de Ottawa -só neste ano quatro novos países assinaram o acordo: Etiópia, Butão, Letônia e Vanuatu.
Mas 40 continuam de fora, entre os quais Estados Unidos, China, Rússia, Índia, Paquistão, Irã e Coréia do Norte.

Revisão
O tratado passou por sua última revisão no início deste mês, em Zagreb, na Croácia. Nesse encontro foi apresentado o sétimo relatório do Landmine Monitor, que mostra a situação atual em cada um dos 104 países afetados pelas minas ou envolvidos de alguma forma com a questão.
O resultado geral é que, apesar de uma queda no número de países que registraram acidentes com minas entre 2004 e 2005, aumenta a cada dia o número de sobreviventes que irão precisar de assistência social, médica e psicológica por toda a vida.
Além disso, dos três países que encabeçam a lista do número de vítimas em 2004 -Camboja, Afeganistão e Colômbia-, somente no segundo houve uma diminuição de casos, com 140 registros a menos.
Isso sem falar em países como o Irã, o Iraque, o Vietnã, a Índia e o Paquistão, nos quais os números de registros simplesmente não são confiáveis. (VS e MES)

HOME

Entre em contato

fone: 55 - 11 - 9631-0666

© copyright 2005 Mediaquatro