Finalmente uma desminagem segura

por: Vinicius Souza and Maria Eugênia Sá [MediaQuatro]

Depois de uma longa fila de erros que causaram centenas de acidentes, muitos fatais, novo batalhão da Polícia Nacional do Peru garante a qualidade da desminagem de 1.711 torres de transmissão de energia.

Além de permanecer com alguns pontos minados na fronteira com o Equador devido a um conflito há muito resolvido, o Peru tem atualmente como seu principal foco de acidentes com minas entre civis, os entornos das torres nas linhas de transmissão de energia que cortam o país. No meio da década de 1980, os guerrilheiros do grupo Sendero Luminoso iniciaram uma estratégia de derrubada das torres nas linhas de alta tensão para causar quedas no serviço de fornecimento de energia em diversas regiões, incluindo a capital Lima. Em 1986, em um único dia nas vésperas das eleições, dez torres foram derrubadas provocando um imenso apagão nacional. A partir deste momento, as autoridades decidiram que era urgente proteger sua infra-estrutura de transmissão de energia. Entretanto, era inviável manter tropas em todas as torres, várias localizadas em meio a florestas, terrenos inóspitos e em grandes altitudes. A solução encontrada foi minar rapidamente os entornos dessas torres. Mas como em todo plano feito às pressas, este estava cheio de erros que se mostrariam fatais.

 A Polícia Nacional, encarregada da tarefa, desenvolveu o que convencionou chamar de "dispositivo explosivo de auto-proteção", que basicamente era uma granada do exército adaptada com um sistema de acionamento por pressão montada no próprio local onde seria plantada. Pode-se afirmar que se tratava de uma mina quase artesanal e improvisada. Mais tarde a Marinha do país desenvolveria uma mina própria, menor, mais poderosa, mas um pouco mais segura quanto ao funcionamento. Em 1989, um grupo de 60 policiais foi montado para plantar entre 30 e 50 minas em torno de cada uma das 1.711 torres localizadas em pontos estratégicos entre os departamentos de Lima, Junín, Huancavélica e Ica. Destes profissionais apenas 23 tiveram algum tipo de capacitação em explosivos e se encarregaram de repassar os ensinamentos aos demais. Eles simplesmente não tinham equipamentos de proteção pessoal e nem contavam com uma boa infra-estrutura de transporte e socorro, caso fosse necessário. Pior, cada vez que era preciso algum tipo de manutenção técnica nas torres, esses profissionais eram enviados para "abrir um caminho" até a torre "desarmando" e retirando as minas de uma faixa de terra que seriam depois "re-plantadas" e "re-armadas". Também não havia mapas confíaveis da localização exata das minas, já que muitas estavam em terrenos acima dos 5.000 metros e sujeitas a deslocamentos por chuvas, inundações, neve, crescimento da vegetação, etc.

A falta de capacitação adequada, de equipamentos de segurança pessoal, de mapas corretos, de qualidade das próprias minas e a principalmente a estratégia equivocada de retirada e re-inserção das minas, contrária a qualquer procedimento padrão de desminagem no mundo, causaram dezenas de acidentes. Oitenta e um profissionais que passaram pela antiga unidade DIVSAM-DEXA (Divisão de Seguridade de Ativação de Minas - Dispositivos Explosivos de Auto-Proteção) foram atingidos por explosões, muitos foram mutilados e cinco morreram em decorrência dos ferimentos. Dos sobreviventes, 41 foram aposentados por invalidez e 35 feridos leves contiuam trabalhando. Oito deles montaram a AVISCAM - Associação de Vítimas e Sobreviventes de Campos Minados, para os representar junto ao governo e Polícia Nacional, e também para criar projetos de educação sobre risco de minas para as populações das regiões afetadas. Entre 1989 e 2003, mais de 300 acidentes com minas foram registrados no Peru, 173 em torno das torres de transmissão de energia. São casos como o de Fredy Mendonza, que aos nove anos pastoreava suas ovelhas perto de uma torre de alta tensão no departamento de Junín quando viu no chão um objeto brilhante que imaginou ser um rádio. Em sua curiosidade infantil, pegou o artefato e apertou o botão que o fez explodir. A família o encontrou desfalecido e pensou que ele tivesse morrido. O menino só viria a se mexer quase 16 horas depois, no meio de seu próprio velório, quando finalmente foi levado ao hospital. Hoje ele vive na periferia de Lima e conta com o auxílio financeiro para os cuidados médicos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha - CICV e a ajuda de uma irmã de 12 anos para vender balas nos ônibus.
Segundo o relatório do Landmine Monitor, cerca de 60 mil minas foram retiradas dos terrenos em torno das 1.711 torres entre junho de 2002 e fevereiro de 2004. Mas até julho de 2005, só 50 dessas torres haviam tido assegurada a qualidade da desminagem. Em junho de 2005, a Policía Nacional declarou que 1.361 torres de energia previamente desminadas em Huancavelica, Ica e Lima ainda eram consideradas perigosas. País parte do Tratado de Otawa, que prevê a desminagem total do terreno e a destruição dos estoques de minas, desde 1999, o Peru de fato conta hoje com equipes de desminagem totalmente reformuladas, re-equipadas e melhor treinadas. Na Polícia Nacional, a atual unidade de desminagem DIVSECOM - Divisão de Segurança Contraminas, com cerca de 80 membros, conta com apoio de treinamento e atualização da OEA - Organização dos Estados Americanos. Os métodos são completamente diferentes dos utilizados nos anos 1990 e seguem os padrões internacionais estabelecidos. As minas encontradas já não são desenterradas, mas explodidas no local com toda a segurança. Cada esquadrão de desminagem é composto por oito profissionais: um chefe de esquadrão, dois detetoristas, dois sondadores, um especialista em explosivos, um enfermeiro e um encarregado de fazer a campanha de sensibilização e educação para risco nas comunidades próximas afetadas. Eles utilizam detetores de metais e se protegem com botas, coletes e capacetes anti-impacto apropriados.
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  • Cada esquadrão de desminagem da DIVSECOM
  • é formado por oito sapadores profissionais.

O trabalho de garantia da qualidade de desminagem de todas as torres deveria ter sido concluído até junho de 2006, mas uma falha nos acordos de cooperação levou a um grade lapso de financiamento que paralizou essas atividades por um longo período. Como também não há atividades regulares de educação sobre riscos de minas no Peru desde 2003, os acidentes com civis continuam a ocorrer. É o caso do menino Noe Ñahuero Cordova, que morava com família indígena da etnia Quéchua, no departamento de Huancavelica. Assim como Fredy, ele também apanhou no campo um objeto que não conhecia. Noe levou o artefato para casa e no dia seguinte o amarrou em um graveto para colocá-lo no fogão a lenha. Com a explosão o menino de 10 anos teve o braço direito arrancado, perdeu um olho e teve que passar por uma cirurgia no outro para a colocação de uma lente intraocular. Ele também conta com algum auxílio médico do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Já entre os desminadores, a realidade mudou completamente. Desde e o reinício dos trabalhos de garantida de qualidade na desminagem em março deste ano, 523 torres foram liberadas. Foram encontradas nove minas e cerca de 1.700 restos de materiais explosivos potencialmente perigosos (UXOs - unexploded ordnances). No novo DIVSECOM, apenas acidentes mais leves foram registrados. O único caso mais sério ocorreu com o Major Liñan Vasques Julio, que teve a vista afetada e hoje está em tratamento numa unidade especial na Colômbia.

Biografia

HeadshotVinicius Souza e Maria Eugênia Sá são jornalistas e fotógrafos que percorrem o mundo em projetos pessoais de cunho humanitário. Seu primeiro contato com a problemática das minas ocorreu em 2002 durante o projeto Angola - A Esperança De Um Povo, que resultou em diversas matérias, exposições e um livro. Eles também estiveram na fronteira minada entre Índia e Paquistão quando cobriram os movimentos separatistas da Caxemira em 2004. Desde 2005 desenvolvem o projeto América Minada, sobre a situação das minas na América Latina, que já resultou em quase dez artigos publicados na imprensa mundial, duas exposições fotográficas na Venezuela e Peru e que agora busca financiamento para novas exposições, a produção de mais um livro, um vídeo e continuação do projeto na América Central.

Notas

  1. "Peru." Landmine Monitor Report 2005. International Campaign to Ban Landmines. Updated October 2005. http://www.icbl.org/lm/2005/peru.html. Accessed October 23, 2006.
  2. Convention on the Prohibition of the Use, Stockpiling, Production and Transfer of Anti-personnel Mines and on Their Destruction, Olso, Norway. September 18, 1997. http://www.un.org/Depts/mine/UNDocs/ban_trty.htm. Accessed October 17, 2006. The document was opened for signature in Ottawa, Canada, December 3, 1997, and thus is commonly known as the Ottawa Convention.

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